segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Enquanto a chuva cai capítulo I.

 

LEMBRANÇAS


          A tarde estava quente. Era um típico dia de verão daqueles que faz as pessoas desejarem o inverno. Dentro do escritório, o velho ar condicionado gemia pateticamente sem conseguir dar conta de tanto calor. William sentado em sua cadeira preferida olhava curiosamente o envelope que acabara de receber. Dentro, parecia ter um cartão postal ou algo do tipo. Não havia remetente, e o endereço anotado mostrava que quem quer que fosse que o tivesse enviado, conhecia-o de alguma forma.
          Abre o envelope lentamente e com bastante cuidado. Não quer danificar o conteúdo. Para surpresa sua, há uma fotografia antiga. Nela estão os seus colegas dos tempos de colégio. Lembra-se daquela época, e tais lembranças trazem de volta sentimentos há muito adormecidos.
           Observando mais atentamente, pôde divisar a figura de alguém que fez e ainda faz seu coração bater acelerado. Duas lágrimas escorrem pela sua face. Fecha os olhos, recorre às lembranças daquele tempo em que era verdadeiramente feliz.
— Vamos nos atrasar, disse Joca jogando a mochila no chão enquanto encostava no poste.
— Pode crê, essas minas demoram demais! Toda vez é isso, completou Carlinhos.
— Ainda falta colá na casa da Fabiana e só tem meia hora pra chegar no colégio, afirmou Orlando fazendo sulcos no chão com uma vara que encontrara pelo caminho.
           Willian encostado no muro cantarolava uma melodia qualquer enquanto olhava para o portão da casa de Mayra na expectativa de vê-la saindo linda e radiante como sempre, pelo menos ele a achava assim.
           Finalmente Fabiana juntou-se ao grupo e eles seguiram rumo à escola conversando alegremente. William fazia questão de sempre andar ao lado de Mayra, no entanto, às vezes ela era rodeada pelas amigas o que o obrigava a contentar-se em olhá-la de longe.
          Todos os dias, quase que religiosamente, Willian, Marquinhos, Orlando, Joca e Carlinhos se juntavam em frente à padaria e desciam a avenida para se encontrarem com as garotas e irem juntos à escola. No grupo das meninas estavam Mayra, Fabiana, Alessandra, Suzana e Vitória. Eles se conheciam do grupo de jovens da comunidade onde moravam. Era um espaço onde os jovens iam para bater papo, ler, jogar, dançar. O lugar era administrado pelo Sr. Nelson e sua esposa Catarina.
          Ele, um homem baixo, pançudo, sobrancelhas grossas e espetadas, cabelo liso e grisalho em um corte tipo militar. Tinha uma voz grave e gostava de ópera. Todos acreditavam que ele poderia ser português por causa do chapéu que sempre usava. Ela, alta, magra, cabelos lisos e pretos na altura do pescoço, falava arrastado e sempre se fazia de surda. Na frente do Sr. Nelson tratava os garotos e garotas muito bem, no entanto, quando estava sozinha, não fazia questão de esconder sua insatisfação de tê-los por perto.
            O Sr. Nelson era carinhosamente chamado de portuga pelo pessoal que frequentava o grupo de jovens, era uma figura muito querida por todos. Muitas atividades eram feitas envolvendo os garotos e as garotas, festas, rodas de leitura, saraus, conversa ao pé da fogueira, quermesses, as danças de quadrilha, a quadrilha...sim, aquela quadrilha…
           Certo domingo ele reuniu os jovens da comunidade para comunicar-lhes que iniciariam os preparativos para a festa junina que seria na igreja matriz naquele ano e não no salão da comunidade como de costume. Também os informou que haveria um concurso de quadrilhas na região e que eles não poderiam ficar de fora.
— Preciso de voluntários para fazer parte da nossa quadrilha! Aqueles que quiserem participar, levantem a mão que entregamos um papelzinho para você escrever seu nome e colocar nas caixinhas que vamos usar para sortear os casais.
          William não estava interessado em fazer parte de qualquer tipo de dança. Propôs-se a não se envolver com aquilo e ficou sentado ao fundo do salão enquanto os papeizinhos eram distribuídos entre aqueles que levantavam a mão. A determinação de William durou apenas até o momento em que viu Mayra levantar a mão, de maneira quase que mecânica, impulsionado por aquele gesto de Mayra, levantou a mão também. Agora havia motivação suficiente para participar.
— Você não tava aí todo emburrado dizendo pra todo mundo que não ia participar dessa palhaçada? Lembrou Joca, sentando-se ao lado de William.
— Quem? Eu? Tá maluco? Adoro festa junina e ainda mais quadrilha. Eu queria mesmo é ser o noivo, afirmou Willian em tom de galhofa.
          O que de fato interessava a William era ter a chance de dançar tendo Mayra como seu par. Não via a hora de os ensaios começarem para que pudesse de alguma forma estar mais perto dela. Já imaginava inúmeras desculpas com a intenção de convidá-la para sair e “conversarem” sobre a dança. Claro, apenas pretexto. Via nisso uma chance de demonstrar seus sentimentos. Ficou refletindo enquanto os nomes eram colocados nas caixinhas para o sorteio.
— Agora vamos formar as duplas. Como vocês viram, os nomes dos garotos estão nesta caixa à direita e os nomes das garotas estão na caixa da esquerda. Os dois primeiros nomes que saírem serão dos noivos. O padre, o pai da noiva e o delegado, serão encenados pelo pessoal da paróquia. Então não precisamos nos preocupar com isso.
           Willian ficou na expectativa de que a sorte lhe sorrisse e ele pudesse fazer par com Mayra. Viu suas esperanças naufragarem no momento em que um garoto de camiseta azul tirou o nome dela da caixinha. Arrependera-se de ter se metido nessa furada. Agora restava-lhe ver o que o destino lhe reservava. Foi até a caixinha e retirou um nome. Seu par seria uma garota que ele nunca tinha visto, pois fazia parte de outro grupo de jovens.
          No fim de semana seguinte começaram os ensaios. Serão quatro ao todo antes da apresentação. No horário marcado, todos já estavam no grande salão paroquial onde os ensaios seriam feitos.
          Willian apresentou-se à garota que seria seu par durante a dança. Os dois trocaram meia dúzia de palavras. Enquanto aguardava o início do ensaio, ele percebeu que seu par não tirava os olhos de um garoto sentado em uma banqueta ao lado de uma janela. O olhar de William brilhou ante a possibilidade que se apresentava à sua frente. Viu nisso uma oportunidade. Aquele era o mesmo garoto que havia tirado o nome de Mayra. Aproximou-se do garoto e disse:
— E aí, beleza? Tem uma mina que tá a fim de você e tá na quadrilha.
— Quem? O garoto perguntou olhando para todos os lados na expectativa de conseguir enxergá-la.
— Aquela que tá com um vestido azul sentada ali do lado do palanque.
          William apontou discretamente na direção da garota e ficou observando a reação dele. Bingo! O cara ficou animado.
— Eu vô dançar com ela na quadrilha, mas se você tiver afim, a gente troca de par, daí cê pode trocar umas ideias com ela, quem sabe rola alguma coisa, né? Disse William batendo levemente no ombro do garoto e dando uma risadinha.
          O garoto, todo empolgado, aceitou imediatamente, o que deixou Willian de certo modo surpreso, pois para ele, Mayra era muito mais bonita.
          Indo até a sua parceira de dança, William contou-lhe sobre a conversa que tivera com o garoto que ela estava de olho e que ele aceitara ser par dela. Assim eles poderiam dançar juntos. No início do ensaio, Willian tomou o seu lugar ao lado de Mayra. Isso a deixou surpresa e ao mesmo tempo aliviada por poder dançar com alguém conhecido.
— Ué e o seu par? Perguntou Mayra.
— Agora é você.
— Como assim? Cê não ia dançar com aquela garota ali?
— Ia, só que troquei porque ela tava de olho no carinha que ia fazer par com você.
— Ah, agora deu pra bancar o cupido, é? Perguntou brincando.
— Fazer o quê, sou assim, sempre ajudo quem precisa.
— Nossa, quanta bondade!
— Claro, e ainda matei dois coelhos com uma cajadada só. Ajudei a garota e ainda te ajudei a fazer par com o cara mais legal desse lugar. Não sou o cara?
— Você é muito do convencido, isso sim!
          Os outros amigos de Willian tiveram de entrar na dança porque as garotas do grupo ficaram insistindo para que eles participassem. Todos caíram na risada quando Orlando contou como ele imaginava o Joca vestido de caipira com aquela cabeleira toda.
— Se fizer duas tranças e colocar dois laços de fita vermelha, fica uma noiva perfeita, sugeriu Marquinho provocando em todos mais gargalhadas ainda.
— E você o noivo, né? Cortou Joca fazendo cara de poucos amigos.
— Que ideia da hora, bora arrumar eles? Sugeriu Alessandra.
— Será que o Sr. Nelson deixa? Vitória perguntou com um certo ar de seriedade.
— Mas pra ficar legal mesmo, a Suzana que é o par do Joca teria de vestir de Noivo, observou Willian.
         Todos riram mais ainda ante a cena imaginada. E assim passou-se aquele primeiro encontro. Quando os amigos se despediram, Willian desejou que os ensaios não terminassem nunca. A sensação que sentia ao tocar as delicadas mãos de Mayra, o cheiro de rosas, que emanava dela quando agitava os cabelos, seu sorriso, as conversas enquanto dançavam, faziam-no amá-la mais e mais. Tinha a esperança de que esses momentos passados juntos pudessem abrir espaço no coração dela. Almejava tê-la para si.
           No domingo seguinte, William desceu a avenida para encontrar-se com Mayra. Eles iriam juntos para o segundo dia de ensaio da quadrilha. Ele tocou a campainha e ficou aguardando-a sair. Uns minutinhos depois, o portão foi aberto e Mayra apareceu. Ela estava usando um vestido florido que combinava bem com o momento. William trajava uma camiseta branca e calça jeans. Achava que para a dança aquela roupa era a mais confortável.
— Tá um dia bonito hoje, né? Mayra disse olhando para o céu.
— Tá mesmo, parece que vai fazer um calorão. Espero que não chova de repente.
— Como esse tempo é doido, tô levando um guarda-chuva na minha bolsa, vai saber.
— Vish! Nem lembrei disso, se começar a chover, tô lascado. Vou ter de ficar mofando lá té passar ou vou ter de voltar na chuva mesmo.
— Te dou uma carona, pode deixar!
— É sério? Cê vai andar coladinha em mim se chover? Então, espero que chova mesmo, disse brincando.
— Para de graça, seu bobão. Agora vô deixar cê se molhar.
— Não faz isso, sei que cê é uma boa pessoa.
— Do que cêis tão falando? Perguntou Mariana, que acabara de sair de casa para ir também.
— A sua irmã que não quer me dar uma carona caso chova. Tô sem guarda-chuva.
— Esquenta não, Will, eu te dou uma carona! No meu guarda-chuva cabe nois dois, bem juntinhos. Disse Fabiana, que tinha chegado a tempo de ouvir a fala de William.
— Deixa de ser assanhada, criatura, disse Mayra fechando a cara.
          Pouco tempo depois, todo o grupo estava reunido. Seguiram então até ao local do ensaio. Quem estava responsável por ensaiá-los era a Dona Catarina. Era ela quem sempre ensaiava a quadrilha, era quase que uma tradição do lugar.
— Aos seus lugares, por favor. Vamos, vamos, temos que começar logo. Há muito o que ensaiar e pouco tempo.
           Enquanto ela foi chamar alguns participantes que estavam do lado de fora do salão, William aproveitou para conversar um pouco mais com Mayra.
— Me diz, qual tipo de música que cê mais gosta?
— Gosto das românticas. Viajo nas histórias das letras. Acho tão lindo.
— Eu prefiro música instrumental. tipo Jazz, Blues, MPB e clássica.
— Nossa, não sabia que cê gostava desse tipo de música.
— É que estudava piano no conservatório, acabei gostando de tanto ouvir. Também viajo, só que nas melodias, sabe?
— Pra mim as músicas precisam de letra, gosto mais.
— E de ler, você gosta?
— Sim, eu gosto, por isso leio bastante.
— Acho que até sei que tipo de livro cê lê; romance, certo?
— Isso aí, garoto esperto. Um dos meus autores preferidos é Nicholas Sparks, é um autor contemporâneo.
— Esse, não conheço. Prefiro os clássicos. E de poesia, cê gosta?
— Gosto bastante.
— Então vou declamar um poema para você, quer ouvir?
— Sério? Cê também gosta de poesia?
— Opa, adoro. Sempre leio bastante e gosto de declamar também. Esse poema chama-se Presságio, do grande Fernando Pessoa:
O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p’ra ela,
Mas não lhe sabe falar.


Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...


Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P’ra saber que a estão a amar!


Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!


Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...


— Bonito, não é? Perguntou William, olhando nos olhos de Mayra.
          Mayra sentiu seu coração disparar, desviou o olhar. Aquele poema pareceu-lhe dizer mais do que estava escrito ali. Tinha a impressão de que William o escolhera premeditadamente. Será que era assim que ele se sentia? Quando quis perguntar algo, a Dona Catarina avisou que o ensaio começaria naquele momento.
           Começaram a ensaiar, William sentia-se no céu. Era um sonho poder dançar ao lado de Mayra. Não se cansava de a olhar. Seu toque era macio e delicado, seu sorriso era hipnotizante, seu olhar, esse olhar, ah aquele olhar… nunca enjoava de olhá-la, sentir seu aroma de rosas. De fato, pensou que pudesse ser um sonho, mas não, era realidade.
            Terminado o ensaio, estavam cansados, pois Dona Catarina exigiu muito deles. Esse cansaço físico para William não importava porque estava ao lado de Mayra, isso bastava.
           Começou a chover. Mayra pegou o seu guarda-chuva da bolsa e abriu-o. William esticou a mão para ver quão grossa estava a chuva, balançou a cabeça desanimado. Parecia que não passaria tão rápido. Jumento, se sabia que seria assim, porque não pegou o guarda-chuva, pensou. Sentiu um toque no seu ombro, virou-se, era Fabiana. Trançou seu braço no braço dele e o arrastou para a chuva sob seu guarda-chuva.
— Vamos, te dou uma carona.
— Valeu, sabia que tinha de trazer o meu, mas esqueci.
           No momento em que Mayra iria se oferecer para dar-lhe uma carona, Fabiana se antecipou. Essa Japa não se emenda, ô bixa oferecida. Ficou aborrecida. Sua irmã aproximou-se e disse que iria com ela, já que também havia esquecido o guarda-chuva. Não havia mais o que fazer, seguiram juntas.
           Fabiana seguia agarrada ao braço de William, dizia que se não fosse assim, molhar-se-ia toda. Mayra e sua irmã seguiam mais atrás. Enquanto caminhavam, Mayra sempre os estava observando. Aqueles ensaios da quadrilha, fizeram com que eles estreitassem os laços de amizade. Sentia um certo ciúme de seu novo amigo estar ao lado de Fabiana. Gostava de conversar com ele, sempre a fazia dar boas risadas. Falavam sobre tudo.
— Will, cê já foi no cinema da cidade?
— Não, não tenho costume de ir no cinema. Sei lá, acho que é porque sempre mudava de cidade e em algumas nem tinha. Outra coisa, ir sozinho é chato, né?
— É que tem um filme passando e eu queria ir ver.
— Que filme é?
— Um filme de ação.
— Pelo seu jeito achava que você gostava mais de filme romântico.
— Até gosto, mas não de todos. Acho mais os de ação, romântico é muito parado, o negócio é tiro porrada e bomba!
— Mas, filme de ação, é legal com a galera, né?
— Pois é, por isso eu não queria ir sozinha, cê vai comigo?
— Vô. marca aí quando e a gente vai.
— Promete?
— Claro, eu vô com você!
          William era meio lerdo para perceber algumas coisas; não se deu conta de que Fabiana gostava dele. Achava que não tinha nada de mais acompanhar uma amiga para ver um filme de ação, se fosse romântico, talvez tivesse desconfiado, mas não foi isso o que aconteceu. Marcaram para depois da festa junina.
          Novamente os garotos e garotas se reuniram para mais um ensaio. Durante a semana era um pouco difícil conversar com Mayra porque ela andava sempre rodeada de gente e isso tornava praticamente impossível terem algum momento para conversarem a sós. Pelo menos era um problema do ponto de vista do objetivo que William tinha de conquistar-lhe o coração.
          Assim que chegou ao salão, viu Mayra sentada conversando com uma colega dela. Quando ela o viu, chamou-o.
— Viu aí? Cê queria tanto que chovesse, e choveu mesmo. Se não fosse a Japa, cê teria se molhado todo, por que eu não ia te dar carona, tá?
— Nossa que coração gelado, até parece a Elsa da animação Frozen! Cê não era assim, o que aconteceu com aquela garota tão fofinha? Foi abduzida? Quem é você? O que fez com minha amiga Mayra? Devolva-a. Disse isso chacoalhando-a e rindo.
— Para! Tô ficando tonta.
— Esquenta não, se for cair eu te amparo em meus braços. Disse isso rindo e olhando para ela.
— Lá vem você com suas brincadeiras.
— O que posso fazer se eu não mando no meu coração? Ele não me obedece, Tá caidinho por você. Por isso eu sofro assim, você não liga pra mim, fazer o quê? Mayra ficou vermelha, e deu um tapa no braço de William.
— Para! Disse cobrindo o rosto.
— Olha lá! Tá vermelha! Eu tava brincando. Não vá se apaixonar por mim, ok?
— Cê tá se achando, né?
— Depois não diga que eu não te avisei, viu? Brincou.
          Começou o ensaio, William fez com que Mayra desse muita risada. Divertiram-se o tempo todo. Foi bem legal. Ele estava bem extrovertido, pois a cada dia se sentia mais à vontade ao lado dela, e ela sentia o mesmo. Quando o ensaio terminou, William saiu do salão, atravessou a praça e foi sentar-se na mureta do coreto. Gostava de ficar ali vendo as pessoas passando de um lado para outro. Moacir veio e sentou-se ao seu lado.
— Cara, comprei aquele jogo de futebol que lançaram semana passada, aquele que a gente tava falando outro dia. Quer dar uma chegada em casa pra gente jogar umas partidas?
— Aí sim, demorô.
— Só dá um tempo até as meninas saírem, que a gente sobe.
— Tava doido pra jogar esse. O gráfico deve tá da hora, né não?
— Tá mesmo, parece que cê tá lá dentro do campo. Dei uma jogada no dia que chegou, foi legal pra caramba.
— Não vejo a hora de ganhar umas de você, patão.
— Vai sonhando, aqui é profissa, maluco.
— Duvido! Não vai chorar depois, ok?
— Tão vindo, bora.
          William e Moacir desceram do coreto para se encontrarem com Mayra e Mariana que estavam saindo do salão. Mariana agarrou o braço de William e seguiram abraçados. Ele gostava muito de Mariana, era como uma irmã que não teve. Ela também gostava muito dele, eles se davam muito bem. Chegando à casa de Moacir, sentaram-se no sofá a fim de jogarem umas partidas, já que Moacir havia instalado seu videogame na TV da sala. Mais tarde, Dona Vilma chamou-os para tomarem um lanche. Aproveitou para pedir que William antes de ir embora tocasse algo para ela. Ele, sempre que vinha à casa de Moacir, tocava algumas músicas para Dona Vilma.
          Depois de jogarem até ficarem cansados, William sentou-se ao piano e começou a tocar as músicas que Dona Vilma gostava tanto. Mayra ao ouvir o som do piano também desceu e ficou ouvindo. Começara a gostar de ouvir música instrumental desde que ouviu William tocando pela primeira vez no sarau. Sentia-se calma e tranquila. Fechava os olhos e deixava que os acordes a levassem numa viagem cheia de sentimentos. De alguma forma, sentia-se atraída pela atmosfera criada pelas músicas que ele tocava. Da mesma maneira, sentia-se atraída por ele também. William foi para casa feliz. Aguardava ansioso o próximo fim de semana em que poderia dançar ao lado de Mayra novamente.
          No domingo seguinte, como era o penúltimo ensaio antes da apresentação final, Dona Catarina estava mais exigente do que nunca. Queria tudo perfeito. William via esse ensaio com uma certa tristeza. Não poderia mais passar tanto tempo ao lado de Mayra.
          Durante o tempo em que aguardava o início do ensaio, William sentou-se ao lado de Carlinhos para conversar. Enquanto conversavam, Fabiana veio sentar-se ao lado deles. Mayra que estava sentada ao lado de Suzana e Mariana, ficou observando-os.
— Que tanto fica olhando pro outro lado? Perguntou Mariana toda interessada.
— Eu? Nada não.
— Ela tá interessada no que tá rolando entre o William e a Fabiana, disse Suzana.
— Aposto que logo, logo, os dois tão namorando. Mariana afirmou convicta.
— Ela tá investindo forte. Falei com ela. Tá caidinha mesmo, disse Suzana.
— Parece mesmo, e ele não percebeu nada? Ele é meio lento pra essas coisas, né não?
— E você Mariana que só anda agarrada com ele? Não tá a fim não?
— Nada a vê. Eu gosto dele, é gente fina pra caramba. A gente combina legal num monte de coisa. É meu brother, mas só a parte legal, sabe?
— A Fabiana disse que vai se declarar pra ele. Tá caidinha mesmo. Até tem um pouco de ciúme da Mariana, confidenciou Suzana.
— E você Mayra, o que acha disso tudo? Fica só aí ouvindo, não fala nada? Vai me dizer que tá a fim do William também? Perguntou Suzana.
— Eu e o William, sem chance. Eu gosto de outra pessoa.
— Senti firmeza não, brincou Mariana. Acho que se o William chegasse firme, levava.
          Mariana e Suzana caíram na gargalhada ao perceberem que Mayra ficou vermelha. No entanto, essa ideia já não lhe parecia tão estranha. Voltou a olhar para William e Fabiana.
          Fabiana passou o braço no de William e pousou sua cabeça no ombro dele. Estava quieta. Apenas deixou-se ficar ali. Do outro lado Mayra pensava consigo mesma. Essa Japa não entende de limites, é uma oferecida.
          Dona Catarina pediu que os pares fossem às suas posições. William chegou ao lado de Mayra puxou conversa, mas ela estava zangada. Não respondeu, não abriu a boca. Ele se perguntava o que teria feito de errado. Tratou-o friamente durante todo o ensaio. Quando o ensaio acabou, William ainda tentou falar com ela, mas não houve conversa. Pensou ser melhor não insistir. Ficou pensativo, pois não podia imaginar o que estava acontecendo.
— Mariana, que bicho mordeu sua irmã?
— Sei não, ela tava normal até agora.
— Nem quis trocar ideia comigo. Tá brava com alguma coisa, sei lá.
—Vai saber, ela é de lua. Liga não, daqui a pouco ela tá de boa.
— Mudando de assunto, que cê achou desse ensaio? Ficou bem melhor do que os outros, né?
— É mesmo, foi mais fácil, parece que todo mundo já conseguiu pegar a coreografia direitinho.
— Semana que vem é o último. A Dona Catarina vai tá um ó.
— Vish! Nem quero ver. Vou até dar uma ensaiada durante a semana pra não errar e não tomar bronca. Bem que você podia me ajudar nessa, né? E aí, rola? Ela perguntou puxando a manga da camisa de William.
— Demorô. Só diz quando.
          William saiu do salão e foi para casa pensando no comportamento estranho de Mayra. Por causa disso, não pôde conversar com ela como gostaria de ter feito. Estranho, muito estranho!
         Na quarta-feira à tarde, William foi à casa de Mariana para ajudá-la a ensaiar. Quando chegou lá, encontrou a Fabiana e o Moacir. Eles, pressentindo o perigo, também resolveram ensaiar para não errarem no último dia. Assim que viu William, Fabiana pulou no pescoço dele e deu-lhe um beijo no rosto. Naturalmente ele ficou todo envergonhado.
— Eu quero que o Will seja o meu par hoje.
— Para de ser atirada, criatura, disse Mariana. Eu que chamei ele, o Moacir já é seu par. Então para de graça.
— Ah, vai só hoje. ajuda aí.
— Sem chance, devia ter convidado antes.
— Que tal vocês pararem essa discussão e começarmos logo o ensaio? Daqui a pouco, a hora passa e não fizemos nada. Eu até pedi pro pai deixar eu ficar em casa hoje pra gente ensaiar. Ele só deixou porque gosta de quadrilha. Disse Moacir.
           Começaram a ensaiar. Refizeram toda a coreografia e quando aparecia alguma dúvida, recorriam ao vídeo que Mariana gravou do último ensaio. O grande problema era que a quadrilha que a Dona Catarina costumava ensaiar sempre tinha coreografias diferentes das costumeiras, por isso, a dificuldade em pegar todos os passos.
          Depois do ensaio, eles ficaram se divertindo dançando. Quando Mayra chegou, Fabiana estava dançando com William um forró. Ela fechou a cara, não cumprimentou ninguém e entrou. Foi direto para o seu quarto. Sentou-se na cama e ficou lá aborrecida, sabe-se lá com o quê. Nem ela entendia direito, ainda não havia se dado conta. Até estava arrependida de ter tratado William tão friamente, mas aquela cena a deixou chateada novamente. Como o seu amigo podia dar mais atenção pra Japa do que pra ela? Era amigo de quem afinal? Não tinha consideração por ela, isso sim. Era uma amizade falsa e toda aquela conversa mole de que estava apaixonado por ela, tudo conversa. Devia falar a mesma coisa para a Fabiana e sabe-se lá para quantas mais. Ficou com mais raiva ainda.
          Quando desceu, eles já haviam ido embora. William até queria ter falado com Mayra, mas achou melhor deixar para uma outra hora. Mariana estava pegando água do filtro quando Mayra entrou na cozinha.
— Que bicho te mordeu? Mariana perguntou.
— Bicho? Que bicho?
— Ué, cê tá toda estranha. Que tá pegando?
— Nada, ué.
— Nada? Desde o dia do ensaio você não quer falar com o Will.
— Que intimidade é essa? Will?
— De tanto a Fabiana chamar ele assim, eu comecei a chamar também.
— Ah, a Fabiana, sempre a Fabiana.
— Que foi? Tá com ciúme, tá?
— Sai fora, tá doida?
— Parece. No ensaio não tirava o olho deles, aqui em casa fechou a cara quando viu eles dançando. Tem alguma coisa estranha aí, não tem não?
— Tá sonhando é? Ele é só meu amigo.
— Não parece.
— Cê tá cansada de saber que eu gosto do Orlando, certo?
— Tá bom, o Orlando, sei. Antes cê vivia falando Orlando pra cá, Orlando pra lá, era um saco. Agora nem lembro quando cê falou nele da última vez. Parece que não liga mais pro cara. Sabia que ele falou com você no ensaio e você nem respondeu?
— Pra começo de conversa, eu nem vi o Orlando no ensaio.
— Tá vendo, antes ficava procurando ele pra todo lado. Agora, nem viu quando ele falou com você. Ficou mó sem graça.
— Não viaja!
— O pior cego é aquele que não quer ver e tem mais, o Will tá chateado com você, sabia?
— Chateado? E por quê?
— Lógico, cê nem falou com o cara, deixou ele no vácuo hoje. Tava até me perguntando se eu sabia o que cê tinha.
— Ah, não enche, tá?
— Aff, tá azeda mesmo.
           Mayra subiu ao seu quarto pisando duro. Eu com ciúme? Que ideia ridícula. Nada vê. No entanto, começou a pensar que realmente tinha ficado brava com ele sem motivo. A culpa é da Japa que fica se atirando pra cima do William. Também ele é mole, não sabe dar um chega pra lá nela não? Mas, deixa que eu resolvo isso, quando der eu coloco essa Japa no lugar dela.
          Chegou enfim o último ensaio. Todos estavam reunidos e Dona Catarina mais estressada do que antes. Mariana virou-se e disse para William — Ainda bem que ensaiamos antes. Quando Mayra chegou e viu William, deu um belo sorriso. Ele ficou olhando-a sem entender nada, apenas pensou na música do Charlie Brown JR “Mulher de Fases”. É doida. Eu me apaixonei pela garota doida da música, não é possível e começou a dar risada.
— O que foi? Ela perguntou.
— Nada não. Só me lembrei de um troço engraçado. Como ela estava de bom humor, nem quis saber o que tinha acontecido. É fase, pensou apenas.
            Começou o ensaio, todos os pares se posicionaram em suas marcas. Dessa vez, repassariam toda a apresentação e por isso o ensaio seria mais longo. Como a dança já estava bem ensaiada, Dona Catarina se empenhou em acertas as outras partes que ainda não estavam tão sólidas. Foi bem cansativo. Quando tudo terminou, William só pensava em ir para casa. Desejava tomar um banho, cair no sofá e não pensar mais nisso. No momento em que estava de saída, sentiu um leve toque em seu ombro, era Mayra.
— Já tá indo?
— Já! Tô cansado. Esse de hoje foi bem puxado.
— Também já vou, vamos juntos?
— Bora! É doida mesmo, no outro dia nem olhou pra minha cara e agora até ir embora comigo quer, quem entende essas mulheres, pensou.
           Os dois seguiram juntos conversando por todo o caminho. William gostava de sentir o cheiro dela, conversar sobre qualquer assunto, observá-la sorrir. Tudo isso, alegrava-lhe a alma. Algumas vezes, pensou em declarar-se, mas tinha medo. Sabia de seu amor por Orlando e isso o impedia de dizer diretamente o que sentia. No entanto, mesmo que muitas vezes em tom de brincadeira, falava o que sentia. Invariavelmente ela ficava vermelha, o que era um charme.
          Chegou o dia da apresentação. Todos estavam um tanto nervosos. O que era normal diante de uma plateia tão exigente como a que estava ali. Sempre esperavam que o ano seguinte superasse o anterior. Todos eles estavam fantasiados de caipira. Tomaram seus lugares e ficaram aguardando a música começar. Mayra estava tensa. William segurou-lhe a mão.
— Não esquenta, vai dar certo. Disse isso apertando a mão dela.
— Tô bem nervosa. E se eu errar? E se esquecer a coreografia?
— A gente ensaiou bastante. É só fazer como nos ensaios e não prestar atenção no povo que tá assistindo.
— Vou tentar, afirmou.
— Se esquecer de algo, é só olhar pra mim e fazer como eu tô fazendo.
          A música começou. Iniciou a dança. Estavam muito bem ensaiados. Correu tudo certo e de acordo com as expectativas. Quando a apresentação acabou, sentiram-se aliviados, pois o objetivo foi alcançado. William estava tão tenso que nem reparou o quanto Mayra estava engraçadinha naquele traje de caipira. Ela fez tranças no cabelo, amarrou um laço de fita em cada uma e isso lhe deu um aspecto de moleca travessa. As pintas no rosto eram naturais mesmo. William sentiu que toda essa aventura os aproximou um pouco mais.
          Esses alegres tempos vividos por ele junto de Mayra transformaram-se em lembranças que o fariam guardá-las ternamente no coração.
          Acabada a festa, a rotina retorna e a vida segue no mesmo marasmo de antes. Apenas um fato mudou, William estava mais apaixonado. Ah, aquela quadrilha…
          Naquela noite, enquanto a chuva cai, William sozinho em seu apartamento relembra com saudade de um tempo em que era realmente feliz.








quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Memórias capítulo I


Mudança


Há momentos na vida em que as pessoas precisam tomar algum tipo de decisão que, supostamente ou aparentemente seja a mais correta e sensata. No entanto, em alguns casos, isso pode se mostrar, com o passar do tempo, um dos maiores equívocos ou a melhor coisa que se poderia ter feito. Mas como de fato saber qual a melhor decisão? Como é possível avaliar se esta ou aquela escolha é a mais correta?

Alice pensava nisso enquanto arrumava suas malas para a mudança. Sua vida havia virado de ponta cabeça de um momento para o outro. Acabara de sair de um casamento de muitos anos, e tudo isso foi difícil e doloroso. Perdera o emprego. Não tinha filhos e o homem que julgara ser o grande amor de sua vida traiu-a com a secretária. Nada mais a prendia naquele lugar. Pegou suas malas e saiu. Saía de cabeça erguida, embora sua autoestima estivesse abalada. Fora trocada por uma mulher muito mais jovem e isso a deixou deprimida. Sentia-se feia e velha.

Mudou-se para uma cidade litorânea chamada Amina. Estava em busca de si mesma, queria se reencontrar, se redescobrir, por isso essa repentina mudança. Lá, encontrou emprego em uma cafeteria que ficava anexa a um pequeno Resort. Os dois negócios eram de propriedade de Dona Lourdes e seu esposo, Sr Lourenço. Ela, uma senhora já lá pelos seus 65 anos, rechonchuda, cabelos grisalhos e encaracolados sempre presos em um coque, olhos azuis, pele bem clara, rosto redondo, sobrancelhas finas, tinha uma expressão alegre. Ele, um senhor perto de seus 68 anos, baixo, roliço, olhos castanhos claros e pequenos, cabelos castanho-claros bem liso, sobrancelhas grossas, rosto redondo, sempre de suspensórios metido em uma calça de brim e uma boina italiana. Tinham um casal de filhos. O rapaz era dono de uma concessionária de veículos pesados em Isla. A moça era empresária no ramo da moda, ambos casados e com filhos, os quais eram a alegria de Dona Lourdes e do Sr. Lourenço quando vinham visitá-los 

Elisa chegou no domingo umas dezesseis horas, por enquanto, até alugar uma casa, ficaria morando no Resort. Ela conheceu Dona Lourdes quando trabalhava no escritório de advocacia, de onde fora despedida umas semanas atrás. Defendeu-a em um processo contra um fornecedor. Nesse espaço de tempo, tornaram-se amigas. Algumas vezes Alice havia ido passar o final de semana no Resort quando seu esposo, agora ex, estava viajando.

Dona Lourdes acompanhou todo o processo de separação dela e em muitos momentos foi sua confidente. Era uma pessoa muito bondosa e se compadeceu do sofrimento da amiga. Quando ficou sabendo que ela havia perdido o emprego e desejava mudar de cidade, ofereceu-lhe uma vaga em sua cafeteria. Achou que Alice não aceitaria por causa de sua formação e padrão de vida, no entanto, surpreendeu-se, pois Alice aceitou prontamente. Desejava deixar sua antiga vida para trás e começar novamente. Sempre se achou deslocada de tudo aquilo, era como se não pertencesse àquele lugar.

— Seja bem vinda minha querida Alice, Dona Lourdes disse abraçando-a carinhosamente.

— Muito obrigada por me dar a chance de mudar de vida, agradeceu com os olhos marejados.

— Ainda dói muito, não é?

— Sim, sinto como se meu peito fosse rasgar-se, disse enquanto enxugava as lágrimas.

— O tempo cura tudo. Daqui a pouco você terá esquecido, disse tentando animar a amiga.

— Muito obrigada mais uma vez.

— Venha, vou mostrar-lhe o seu quarto. Pode deixar as malas aí mesmo. Já, já, o Albertinho leva-as para você.

Alice foi conduzida ao aposento que ocuparia até encontrar uma casa. Era um quarto de uns oito metros quadrados. Os móveis eram: uma cama de casal, dois criados mudos, um guarda roupa com duas portas, onde estavam guardados os cobertores, lençóis e toalhas; uma mesa pequena onde ficava o telefone e um cardápio, uma cadeira e um frigobar repleto de bebidas. Na parede em frente à cama ficava fixada a TV. Ao lado esquerdo o banheiro.

Alguns instantes depois, Albertinho veio trazer-lhe as duas malas. Não quis ficar com nada que pudesse lembrar sua antiga vida. Trouxe apenas o que comprou com seu próprio dinheiro. Se havia algo do que não pôde reclamar foi o fato de que seu ex-marido nunca deixou de comprar-lhe tudo o que precisava. Por esse motivo, tinha um bom dinheiro guardado no banco e o valor aumentaria mais ainda com o recebimento da rescisão que sairia nos próximos dias. Teria apenas que voltar ao escritório para assinar a papelada e dar por finalizada essa etapa de sua vida.

Depois de tomar um belo e demorado banho, deitou-se para descansar da viagem. Estava esgotada, mas de um esgotamento mental do que físico. Durante aqueles últimos dias, passou por grande pressão psicológica. O cansaço era tanto que assim que se deitou, logo pegou no sono. Acordou lá pelas dezenove horas morrendo de fome. Há muito tempo não sentia [1]tanta fome assim, pensou que poderia ser por causa da ¹maresia. Saiu de seu quarto e dirigiu-se ao buffet do Resort. Fez seu prato e encaminhou-se à área externa onde estavam umas mesas ao redor da piscina. Como era baixa temporada, o lugar estava bem vazio. Muitos dos que vieram passar o final de semana ali, já haviam deixado o local.

Dona Lourdes veio sentar-se ao lado dela trazendo seu prato de comida.

— Conseguiu descansar um pouco minha querida?

— Sim, tanto que até me deu fome.

— Isso é bom. Fico feliz que o ar daqui já tenha começado a fazer efeito em você.

— Realmente, fazia tempo que eu não sentia tanta fome assim. Esse lugar é tão tranquilizador. Dá uma paz no coração da gente. Estou pensando em dar uma volta na praia depois do jantar.

— Perfeito, você perceberá que depois disso, se sentirá muito melhor.

Logo após o jantar, Alice saiu do Resort para dar uma volta pela praia. Seu coração ainda estava muito pesado. Sentia-se machucada, ferida, triste. Andava pelo calçadão da orla enquanto repassava seus últimos dias. Uma profunda tristeza tomava conta de seu coração. Não estava exatamente triste pela separação em si, mas sim pela forma como tudo se deu.

Foi traída e isso fazia o seu coração doer, era como se aquilo estivesse se repetindo uma segunda vez, como se já tivesse passando novamente pela angústia de uma traição, era como se uma ferida tivesse sido reaberta. Vivera inteiramente para aquela relação, entregara-se sem reservas e agora, o que havia restado? Apenas mágoa e um coração despedaçado.

Sentou-se em um banco de frente para o mar e ficou observando as ondas por um bom tempo. Começou a sentir-se um pouco melhor. Aquele barulho e o vai e vem das ondas lhe acalmavam o coração.

Algum tempo depois, levantou-se e começou a caminhar pela areia deixando que as ondas molhassem os seus pés. Ansiava que aquelas ondas levassem embora aquele aperto no coração. Continuou caminhando sentindo a brisa suave agitar-lhe os cabelos. Viu um casal que vinha na direção contrária, estavam tão felizes que fizeram-na desejar a mesma felicidade. Mais à frente, um grupo de jovens cantava alegremente ao som de violão sentados na areia da praia. Deteve-se um pouco de tempo a fim de ouvir a cantoria, lembrou-se de seu tempo de estudante quando muitas vezes se juntava a seus amigos de escola para também cantarem em volta de alguma fogueira ou em uma rodinha na praça.

Quando voltou ao Resort, já eram umas nove da noite. Começaria seu trabalho na cafeteria no dia seguinte. Dona Lourdes disse-lhe que poderia começar na semana seguinte, mas ela queria manter-se ocupada e quanto antes fizesse isso, tanto melhor. Assim, não teria tempo para ficar remoendo seus sentimentos.   

 Levantou-se às seis da manhã, tomou banho, vestiu seu uniforme e saiu para tomar seu desjejum. Encontrou no caminho o Sr Lourenço que estava dirigindo-se para o buffet.

— Olá Alice, dormiu bem?

— Bom dia Sr Lourenço, sim muito bem.

— Já vai pegar no batente logo cedo? Não quer descansar mais um pouco?

— Quero começar o quanto antes, assim me mantenho ocupada. Não quero ficar remoendo meus pensamentos. Tudo ainda é muito difícil.

— Nem consigo imaginar o quanto deve estar sendo difícil para você, só posso desejar que tudo isso passe o mais rápido possível.

— Muito obrigada. Tenho certeza de que aqui de fato conseguirei colocar uma pedra sobre essa situação.

Depois de tomar seu desjejum, Alice foi até a cafeteria onde Dona Lourdes a estava esperando.

— Está animada para começar?

— Sim, espero poder corresponder às expectativas. Mais uma vez quero agradecer pela oportunidade e confiança.

— Que isso minha filha, eu é que agradeço por você ter aceitado trabalhar aqui comigo. Como te disse, o salário não é lá aquelas coisas, mas as gorjetas são bem generosas.

— Para quem quer recomeçar a vida, é tudo o que preciso.

Dona Lourdes mostrou-lhe toda a rotina da cafeteria e apresentou os demais funcionários que trabalhavam ali. Alice procurou prestar muita atenção às orientações e anotou tudo o que julgou relevante. Nos primeiros dias, até que pegasse o jeito, ficaria responsável por atender às mesas. Depois passaria a atender ao balcão. Dona Lourdes sabia do grande potencial que Alice tinha e almejava deixá-la como gerente do lugar, assim teria mais tempo para cuidar do Resort porque seu marido sozinho não estava conseguindo dar conta.

Alice aprendia muito rápido. Uma semana depois já estava operando o caixa. Dona Lourdes já podia ficar a maior parte do tempo no Resort e deixar a cafeteria aos cuidados dela.

A clientela do café era constituída basicamente de turistas e trabalhadores do comércio local. Já conhecia a maior parte desses frequentadores e conseguia distinguir a preferência da maioria deles. Ela era uma trabalhadora incansável, muito educada e prestativa. Ganhara peso e tinha uma expressão mais alegre, mais bonita. Quando chegou à cidade estava muito magra e trazia uma fisionomia um tanto triste. Apesar de sua beleza, aparentava ter mais idade do que realmente tinha. No entanto, aquelas duas semanas trabalhando ali fizeram-na remoçar e trouxeram de volta a sua beleza natural.

Dona Lourdes não cansava de elogiar a competência de Alice e sua dedicação ao trabalho. Também eram muitos os elogios que recebia da clientela pela atenção que dispensava aos frequentadores do lugar. Por conta disso, o número de clientes quase que dobrou obrigado Dona Lourdes a contratar mais uma pessoa para ajudar no atendimento. A beleza de Alice correu a cidade e os solteirões de plantão afluíram para o lugar no intuito de, se possível, caírem nas graças daquela linda mulher. Em contrapartida, tal beleza provocava ciúmes nas esposas e namoradas que acompanhavam seus pares. Não que Alice desse algum motivo para isso, pelo contrário, procurava manter-se alheia e evitava toda e qualquer situação que pudesse provocar algum mal entendido.

Dona Lourdes se divertia com os olhares dos clientes seguindo encantados aquela linda figura se movimentando no balcão. Estavam  como que hipnotizados diante de beleza tão exuberante.  Era como uma flor que desabrochou em todo o seu vigor. Parecia ser outra pessoa. Agora, sorria quando conversava com os clientes. Muitas vezes, era pega cantarolando, nem chorava mais quando lembrava da traição e do divórcio. Toda aquela lida diária lhe fez muito bem.

Fazia três meses que Alice trabalhava ali, estava realmente muito feliz. Fez muitas amizades. Conhecia muita gente e também era conhecida. Entretanto, um certo dia mostrou-se desanimada.  Dona Lourdes preocupou-se e veio saber o motivo que a estava perturbando. Tinha-a como uma filha e desejava que ela realmente fosse feliz.

— O que está te incomodando, minha querida?

— Ah, Dona Lourdes, recebi um e-mail informando-me que os papéis do divórcio saíram.  Teremos uma audiência de  conciliação daqui a duas semanas. É apenas uma formalidade, mas eu realmente não queria ter que encontrá-lo outra vez. Tenho medo de que se eu o vir toda a dor que senti volte novamente.

— Realmente, creio que é uma situação muito complicada. Você gostava bastante dele, não é?

— Foram quase dez anos de convivência. A senhora não faz ideia da dor que eu senti quando o flagrei na cama com aquela mulher, justo na cama de nossa casa. A senhora imagina como isso me feriu profundamente?

— Nem consigo imaginar.

— Só em saber que o verei daqui a alguns dias, isso já me deixa nervosa. Não sei como vou reagir a isso.

— Quer que eu vá com você?

— Não será preciso. Minha colega, que também é advogada, vai me acompanhar.

— Pense pelo lado bom, depois disso, você nunca mais terá de vê-lo de novo.

— Assim eu espero.

Alice procurou não mais pensar sobre a audiência. Entregou-se mais ainda ao trabalho a fim de não ficar revirando aquele assunto. Decidiu que deixaria para se preocupar com aquilo na hora em que chegasse ao fórum. Os dias passaram e ela não demonstrou mais estar preocupada com o reencontro, pelo menos procurava não demonstrar às pessoas o que de fato sentia.



[1] Névoa fina e úmida que às vezes paira sobre as cidades do litoral, flutuando ao longo da costa. Esse spray é formado por bilhões e bilhões de gotículas de água do mar, que sobem ao ar toda vez que uma onda arrebenta na praia.

 

 

 

quinta-feira, 20 de maio de 2021

Boas vindas

Olá, seja muito bem vindo ao meu blog!
Aqui você encontrará ideias, reflexões e trechos de meus livros.