quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Memórias capítulo I


Mudança


Há momentos na vida em que as pessoas precisam tomar algum tipo de decisão que, supostamente ou aparentemente seja a mais correta e sensata. No entanto, em alguns casos, isso pode se mostrar, com o passar do tempo, um dos maiores equívocos ou a melhor coisa que se poderia ter feito. Mas como de fato saber qual a melhor decisão? Como é possível avaliar se esta ou aquela escolha é a mais correta?

Alice pensava nisso enquanto arrumava suas malas para a mudança. Sua vida havia virado de ponta cabeça de um momento para o outro. Acabara de sair de um casamento de muitos anos, e tudo isso foi difícil e doloroso. Perdera o emprego. Não tinha filhos e o homem que julgara ser o grande amor de sua vida traiu-a com a secretária. Nada mais a prendia naquele lugar. Pegou suas malas e saiu. Saía de cabeça erguida, embora sua autoestima estivesse abalada. Fora trocada por uma mulher muito mais jovem e isso a deixou deprimida. Sentia-se feia e velha.

Mudou-se para uma cidade litorânea chamada Amina. Estava em busca de si mesma, queria se reencontrar, se redescobrir, por isso essa repentina mudança. Lá, encontrou emprego em uma cafeteria que ficava anexa a um pequeno Resort. Os dois negócios eram de propriedade de Dona Lourdes e seu esposo, Sr Lourenço. Ela, uma senhora já lá pelos seus 65 anos, rechonchuda, cabelos grisalhos e encaracolados sempre presos em um coque, olhos azuis, pele bem clara, rosto redondo, sobrancelhas finas, tinha uma expressão alegre. Ele, um senhor perto de seus 68 anos, baixo, roliço, olhos castanhos claros e pequenos, cabelos castanho-claros bem liso, sobrancelhas grossas, rosto redondo, sempre de suspensórios metido em uma calça de brim e uma boina italiana. Tinham um casal de filhos. O rapaz era dono de uma concessionária de veículos pesados em Isla. A moça era empresária no ramo da moda, ambos casados e com filhos, os quais eram a alegria de Dona Lourdes e do Sr. Lourenço quando vinham visitá-los 

Elisa chegou no domingo umas dezesseis horas, por enquanto, até alugar uma casa, ficaria morando no Resort. Ela conheceu Dona Lourdes quando trabalhava no escritório de advocacia, de onde fora despedida umas semanas atrás. Defendeu-a em um processo contra um fornecedor. Nesse espaço de tempo, tornaram-se amigas. Algumas vezes Alice havia ido passar o final de semana no Resort quando seu esposo, agora ex, estava viajando.

Dona Lourdes acompanhou todo o processo de separação dela e em muitos momentos foi sua confidente. Era uma pessoa muito bondosa e se compadeceu do sofrimento da amiga. Quando ficou sabendo que ela havia perdido o emprego e desejava mudar de cidade, ofereceu-lhe uma vaga em sua cafeteria. Achou que Alice não aceitaria por causa de sua formação e padrão de vida, no entanto, surpreendeu-se, pois Alice aceitou prontamente. Desejava deixar sua antiga vida para trás e começar novamente. Sempre se achou deslocada de tudo aquilo, era como se não pertencesse àquele lugar.

— Seja bem vinda minha querida Alice, Dona Lourdes disse abraçando-a carinhosamente.

— Muito obrigada por me dar a chance de mudar de vida, agradeceu com os olhos marejados.

— Ainda dói muito, não é?

— Sim, sinto como se meu peito fosse rasgar-se, disse enquanto enxugava as lágrimas.

— O tempo cura tudo. Daqui a pouco você terá esquecido, disse tentando animar a amiga.

— Muito obrigada mais uma vez.

— Venha, vou mostrar-lhe o seu quarto. Pode deixar as malas aí mesmo. Já, já, o Albertinho leva-as para você.

Alice foi conduzida ao aposento que ocuparia até encontrar uma casa. Era um quarto de uns oito metros quadrados. Os móveis eram: uma cama de casal, dois criados mudos, um guarda roupa com duas portas, onde estavam guardados os cobertores, lençóis e toalhas; uma mesa pequena onde ficava o telefone e um cardápio, uma cadeira e um frigobar repleto de bebidas. Na parede em frente à cama ficava fixada a TV. Ao lado esquerdo o banheiro.

Alguns instantes depois, Albertinho veio trazer-lhe as duas malas. Não quis ficar com nada que pudesse lembrar sua antiga vida. Trouxe apenas o que comprou com seu próprio dinheiro. Se havia algo do que não pôde reclamar foi o fato de que seu ex-marido nunca deixou de comprar-lhe tudo o que precisava. Por esse motivo, tinha um bom dinheiro guardado no banco e o valor aumentaria mais ainda com o recebimento da rescisão que sairia nos próximos dias. Teria apenas que voltar ao escritório para assinar a papelada e dar por finalizada essa etapa de sua vida.

Depois de tomar um belo e demorado banho, deitou-se para descansar da viagem. Estava esgotada, mas de um esgotamento mental do que físico. Durante aqueles últimos dias, passou por grande pressão psicológica. O cansaço era tanto que assim que se deitou, logo pegou no sono. Acordou lá pelas dezenove horas morrendo de fome. Há muito tempo não sentia [1]tanta fome assim, pensou que poderia ser por causa da ¹maresia. Saiu de seu quarto e dirigiu-se ao buffet do Resort. Fez seu prato e encaminhou-se à área externa onde estavam umas mesas ao redor da piscina. Como era baixa temporada, o lugar estava bem vazio. Muitos dos que vieram passar o final de semana ali, já haviam deixado o local.

Dona Lourdes veio sentar-se ao lado dela trazendo seu prato de comida.

— Conseguiu descansar um pouco minha querida?

— Sim, tanto que até me deu fome.

— Isso é bom. Fico feliz que o ar daqui já tenha começado a fazer efeito em você.

— Realmente, fazia tempo que eu não sentia tanta fome assim. Esse lugar é tão tranquilizador. Dá uma paz no coração da gente. Estou pensando em dar uma volta na praia depois do jantar.

— Perfeito, você perceberá que depois disso, se sentirá muito melhor.

Logo após o jantar, Alice saiu do Resort para dar uma volta pela praia. Seu coração ainda estava muito pesado. Sentia-se machucada, ferida, triste. Andava pelo calçadão da orla enquanto repassava seus últimos dias. Uma profunda tristeza tomava conta de seu coração. Não estava exatamente triste pela separação em si, mas sim pela forma como tudo se deu.

Foi traída e isso fazia o seu coração doer, era como se aquilo estivesse se repetindo uma segunda vez, como se já tivesse passando novamente pela angústia de uma traição, era como se uma ferida tivesse sido reaberta. Vivera inteiramente para aquela relação, entregara-se sem reservas e agora, o que havia restado? Apenas mágoa e um coração despedaçado.

Sentou-se em um banco de frente para o mar e ficou observando as ondas por um bom tempo. Começou a sentir-se um pouco melhor. Aquele barulho e o vai e vem das ondas lhe acalmavam o coração.

Algum tempo depois, levantou-se e começou a caminhar pela areia deixando que as ondas molhassem os seus pés. Ansiava que aquelas ondas levassem embora aquele aperto no coração. Continuou caminhando sentindo a brisa suave agitar-lhe os cabelos. Viu um casal que vinha na direção contrária, estavam tão felizes que fizeram-na desejar a mesma felicidade. Mais à frente, um grupo de jovens cantava alegremente ao som de violão sentados na areia da praia. Deteve-se um pouco de tempo a fim de ouvir a cantoria, lembrou-se de seu tempo de estudante quando muitas vezes se juntava a seus amigos de escola para também cantarem em volta de alguma fogueira ou em uma rodinha na praça.

Quando voltou ao Resort, já eram umas nove da noite. Começaria seu trabalho na cafeteria no dia seguinte. Dona Lourdes disse-lhe que poderia começar na semana seguinte, mas ela queria manter-se ocupada e quanto antes fizesse isso, tanto melhor. Assim, não teria tempo para ficar remoendo seus sentimentos.   

 Levantou-se às seis da manhã, tomou banho, vestiu seu uniforme e saiu para tomar seu desjejum. Encontrou no caminho o Sr Lourenço que estava dirigindo-se para o buffet.

— Olá Alice, dormiu bem?

— Bom dia Sr Lourenço, sim muito bem.

— Já vai pegar no batente logo cedo? Não quer descansar mais um pouco?

— Quero começar o quanto antes, assim me mantenho ocupada. Não quero ficar remoendo meus pensamentos. Tudo ainda é muito difícil.

— Nem consigo imaginar o quanto deve estar sendo difícil para você, só posso desejar que tudo isso passe o mais rápido possível.

— Muito obrigada. Tenho certeza de que aqui de fato conseguirei colocar uma pedra sobre essa situação.

Depois de tomar seu desjejum, Alice foi até a cafeteria onde Dona Lourdes a estava esperando.

— Está animada para começar?

— Sim, espero poder corresponder às expectativas. Mais uma vez quero agradecer pela oportunidade e confiança.

— Que isso minha filha, eu é que agradeço por você ter aceitado trabalhar aqui comigo. Como te disse, o salário não é lá aquelas coisas, mas as gorjetas são bem generosas.

— Para quem quer recomeçar a vida, é tudo o que preciso.

Dona Lourdes mostrou-lhe toda a rotina da cafeteria e apresentou os demais funcionários que trabalhavam ali. Alice procurou prestar muita atenção às orientações e anotou tudo o que julgou relevante. Nos primeiros dias, até que pegasse o jeito, ficaria responsável por atender às mesas. Depois passaria a atender ao balcão. Dona Lourdes sabia do grande potencial que Alice tinha e almejava deixá-la como gerente do lugar, assim teria mais tempo para cuidar do Resort porque seu marido sozinho não estava conseguindo dar conta.

Alice aprendia muito rápido. Uma semana depois já estava operando o caixa. Dona Lourdes já podia ficar a maior parte do tempo no Resort e deixar a cafeteria aos cuidados dela.

A clientela do café era constituída basicamente de turistas e trabalhadores do comércio local. Já conhecia a maior parte desses frequentadores e conseguia distinguir a preferência da maioria deles. Ela era uma trabalhadora incansável, muito educada e prestativa. Ganhara peso e tinha uma expressão mais alegre, mais bonita. Quando chegou à cidade estava muito magra e trazia uma fisionomia um tanto triste. Apesar de sua beleza, aparentava ter mais idade do que realmente tinha. No entanto, aquelas duas semanas trabalhando ali fizeram-na remoçar e trouxeram de volta a sua beleza natural.

Dona Lourdes não cansava de elogiar a competência de Alice e sua dedicação ao trabalho. Também eram muitos os elogios que recebia da clientela pela atenção que dispensava aos frequentadores do lugar. Por conta disso, o número de clientes quase que dobrou obrigado Dona Lourdes a contratar mais uma pessoa para ajudar no atendimento. A beleza de Alice correu a cidade e os solteirões de plantão afluíram para o lugar no intuito de, se possível, caírem nas graças daquela linda mulher. Em contrapartida, tal beleza provocava ciúmes nas esposas e namoradas que acompanhavam seus pares. Não que Alice desse algum motivo para isso, pelo contrário, procurava manter-se alheia e evitava toda e qualquer situação que pudesse provocar algum mal entendido.

Dona Lourdes se divertia com os olhares dos clientes seguindo encantados aquela linda figura se movimentando no balcão. Estavam  como que hipnotizados diante de beleza tão exuberante.  Era como uma flor que desabrochou em todo o seu vigor. Parecia ser outra pessoa. Agora, sorria quando conversava com os clientes. Muitas vezes, era pega cantarolando, nem chorava mais quando lembrava da traição e do divórcio. Toda aquela lida diária lhe fez muito bem.

Fazia três meses que Alice trabalhava ali, estava realmente muito feliz. Fez muitas amizades. Conhecia muita gente e também era conhecida. Entretanto, um certo dia mostrou-se desanimada.  Dona Lourdes preocupou-se e veio saber o motivo que a estava perturbando. Tinha-a como uma filha e desejava que ela realmente fosse feliz.

— O que está te incomodando, minha querida?

— Ah, Dona Lourdes, recebi um e-mail informando-me que os papéis do divórcio saíram.  Teremos uma audiência de  conciliação daqui a duas semanas. É apenas uma formalidade, mas eu realmente não queria ter que encontrá-lo outra vez. Tenho medo de que se eu o vir toda a dor que senti volte novamente.

— Realmente, creio que é uma situação muito complicada. Você gostava bastante dele, não é?

— Foram quase dez anos de convivência. A senhora não faz ideia da dor que eu senti quando o flagrei na cama com aquela mulher, justo na cama de nossa casa. A senhora imagina como isso me feriu profundamente?

— Nem consigo imaginar.

— Só em saber que o verei daqui a alguns dias, isso já me deixa nervosa. Não sei como vou reagir a isso.

— Quer que eu vá com você?

— Não será preciso. Minha colega, que também é advogada, vai me acompanhar.

— Pense pelo lado bom, depois disso, você nunca mais terá de vê-lo de novo.

— Assim eu espero.

Alice procurou não mais pensar sobre a audiência. Entregou-se mais ainda ao trabalho a fim de não ficar revirando aquele assunto. Decidiu que deixaria para se preocupar com aquilo na hora em que chegasse ao fórum. Os dias passaram e ela não demonstrou mais estar preocupada com o reencontro, pelo menos procurava não demonstrar às pessoas o que de fato sentia.



[1] Névoa fina e úmida que às vezes paira sobre as cidades do litoral, flutuando ao longo da costa. Esse spray é formado por bilhões e bilhões de gotículas de água do mar, que sobem ao ar toda vez que uma onda arrebenta na praia.