Mudança
Há momentos na vida em que as pessoas precisam tomar algum tipo
de decisão que, supostamente ou aparentemente seja a mais correta e sensata. No
entanto, em alguns casos, isso pode se mostrar, com o passar do tempo, um dos
maiores equívocos ou a melhor coisa que se poderia ter feito. Mas como de fato
saber qual a melhor decisão? Como é possível avaliar se esta ou aquela escolha
é a mais correta?
Alice pensava nisso enquanto arrumava suas malas para a mudança.
Sua vida havia virado de ponta cabeça de um momento para o outro. Acabara de
sair de um casamento de muitos anos, e tudo isso foi difícil e doloroso.
Perdera o emprego. Não tinha filhos e o homem que julgara ser o grande amor de
sua vida traiu-a com a secretária. Nada mais a prendia naquele lugar. Pegou
suas malas e saiu. Saía de cabeça erguida, embora sua autoestima estivesse
abalada. Fora trocada por uma mulher muito mais jovem e isso a deixou
deprimida. Sentia-se feia e velha.
Mudou-se para uma cidade litorânea chamada Amina. Estava em
busca de si mesma, queria se reencontrar, se redescobrir, por isso essa
repentina mudança. Lá, encontrou emprego em uma cafeteria que ficava anexa a um
pequeno Resort. Os dois negócios eram de propriedade de Dona Lourdes e seu
esposo, Sr Lourenço. Ela, uma senhora já lá pelos seus 65 anos, rechonchuda,
cabelos grisalhos e encaracolados sempre presos em um coque, olhos azuis, pele
bem clara, rosto redondo, sobrancelhas finas, tinha uma expressão alegre. Ele,
um senhor perto de seus 68 anos, baixo, roliço, olhos castanhos claros e
pequenos, cabelos castanho-claros bem liso, sobrancelhas grossas, rosto
redondo, sempre de suspensórios metido em uma calça de brim e uma boina
italiana. Tinham um casal de filhos. O rapaz era dono de uma concessionária de
veículos pesados em Isla. A moça era empresária no ramo da moda, ambos casados
e com filhos, os quais eram a alegria de Dona Lourdes e do Sr. Lourenço quando
vinham visitá-los
Elisa chegou no domingo umas dezesseis horas, por enquanto, até
alugar uma casa, ficaria morando no Resort. Ela conheceu Dona Lourdes quando
trabalhava no escritório de advocacia, de onde fora despedida umas semanas
atrás. Defendeu-a em um processo contra um fornecedor. Nesse espaço de tempo,
tornaram-se amigas. Algumas vezes Alice havia ido passar o final de semana no
Resort quando seu esposo, agora ex, estava viajando.
Dona Lourdes acompanhou todo o processo de separação dela e em
muitos momentos foi sua confidente. Era uma pessoa muito bondosa e se
compadeceu do sofrimento da amiga. Quando ficou sabendo que ela havia perdido o
emprego e desejava mudar de cidade, ofereceu-lhe uma vaga em sua cafeteria.
Achou que Alice não aceitaria por causa de sua formação e padrão de vida, no
entanto, surpreendeu-se, pois Alice aceitou prontamente. Desejava deixar sua antiga
vida para trás e começar novamente. Sempre se achou deslocada de tudo aquilo,
era como se não pertencesse àquele lugar.
— Seja bem vinda minha querida Alice, Dona Lourdes disse
abraçando-a carinhosamente.
— Muito obrigada por me dar a chance de mudar de vida, agradeceu
com os olhos marejados.
— Ainda dói muito, não é?
— Sim, sinto como se meu peito fosse rasgar-se, disse enquanto
enxugava as lágrimas.
— O tempo cura tudo. Daqui a pouco você terá esquecido, disse
tentando animar a amiga.
— Muito obrigada mais uma vez.
— Venha, vou mostrar-lhe o seu quarto. Pode deixar as malas aí
mesmo. Já, já, o Albertinho leva-as para você.
Alice foi conduzida ao aposento que ocuparia até encontrar uma
casa. Era um quarto de uns oito metros quadrados. Os móveis eram: uma cama de
casal, dois criados mudos, um guarda roupa com duas portas, onde estavam
guardados os cobertores, lençóis e toalhas; uma mesa pequena onde ficava o
telefone e um cardápio, uma cadeira e um frigobar repleto de bebidas. Na parede
em frente à cama ficava fixada a TV. Ao lado esquerdo o banheiro.
Alguns instantes depois, Albertinho veio trazer-lhe as duas
malas. Não quis ficar com nada que pudesse lembrar sua antiga vida. Trouxe
apenas o que comprou com seu próprio dinheiro. Se havia algo do que não pôde
reclamar foi o fato de que seu ex-marido nunca deixou de comprar-lhe tudo o que
precisava. Por esse motivo, tinha um bom dinheiro guardado no banco e o valor
aumentaria mais ainda com o recebimento da rescisão que sairia nos próximos
dias. Teria apenas que voltar ao escritório para assinar a papelada e dar por
finalizada essa etapa de sua vida.
Depois de tomar um belo e demorado banho, deitou-se para
descansar da viagem. Estava esgotada, mas de um esgotamento mental do que
físico. Durante aqueles últimos dias, passou por grande pressão psicológica. O
cansaço era tanto que assim que se deitou, logo pegou no sono. Acordou lá pelas
dezenove horas morrendo de fome. Há muito tempo não sentia [1]tanta
fome assim, pensou que poderia ser por causa da ¹maresia. Saiu de seu quarto e
dirigiu-se ao buffet do Resort. Fez seu prato e encaminhou-se à área externa
onde estavam umas mesas ao redor da piscina. Como era baixa temporada, o lugar
estava bem vazio. Muitos dos que vieram passar o final de semana ali, já haviam
deixado o local.
Dona Lourdes veio sentar-se ao lado dela trazendo seu prato de
comida.
— Conseguiu descansar um pouco minha querida?
— Sim, tanto que até me deu fome.
— Isso é bom. Fico feliz que o ar daqui já tenha começado a
fazer efeito em você.
— Realmente, fazia tempo que eu não sentia tanta fome assim.
Esse lugar é tão tranquilizador. Dá uma paz no coração da gente. Estou pensando
em dar uma volta na praia depois do jantar.
— Perfeito, você perceberá que depois disso, se sentirá muito
melhor.
Logo após o jantar, Alice saiu do Resort para dar uma volta pela
praia. Seu coração ainda estava muito pesado. Sentia-se machucada, ferida,
triste. Andava pelo calçadão da orla enquanto repassava seus últimos dias. Uma
profunda tristeza tomava conta de seu coração. Não estava exatamente triste
pela separação em si, mas sim pela forma como tudo se deu.
Foi traída e isso fazia o seu coração doer, era como se aquilo
estivesse se repetindo uma segunda vez, como se já tivesse passando novamente
pela angústia de uma traição, era como se uma ferida tivesse sido reaberta.
Vivera inteiramente para aquela relação, entregara-se sem reservas e agora, o
que havia restado? Apenas mágoa e um coração despedaçado.
Sentou-se em um banco de frente para o mar e ficou observando as
ondas por um bom tempo. Começou a sentir-se um pouco melhor. Aquele barulho e o
vai e vem das ondas lhe acalmavam o coração.
Algum tempo depois, levantou-se e começou a caminhar pela areia
deixando que as ondas molhassem os seus pés. Ansiava que aquelas ondas levassem
embora aquele aperto no coração. Continuou caminhando sentindo a brisa suave
agitar-lhe os cabelos. Viu um casal que vinha na direção contrária, estavam tão
felizes que fizeram-na desejar a mesma felicidade. Mais à frente, um grupo de
jovens cantava alegremente ao som de violão sentados na areia da praia.
Deteve-se um pouco de tempo a fim de ouvir a cantoria, lembrou-se de seu tempo
de estudante quando muitas vezes se juntava a seus amigos de escola para também
cantarem em volta de alguma fogueira ou em uma rodinha na praça.
Quando voltou ao Resort, já eram umas nove da noite. Começaria
seu trabalho na cafeteria no dia seguinte. Dona Lourdes disse-lhe que poderia
começar na semana seguinte, mas ela queria manter-se ocupada e quanto antes
fizesse isso, tanto melhor. Assim, não teria tempo para ficar remoendo seus
sentimentos.
Levantou-se às seis da
manhã, tomou banho, vestiu seu uniforme e saiu para tomar seu desjejum.
Encontrou no caminho o Sr Lourenço que estava dirigindo-se para o buffet.
— Olá Alice, dormiu bem?
— Bom dia Sr Lourenço, sim muito bem.
— Já vai pegar no batente logo cedo? Não quer descansar mais um
pouco?
— Quero começar o quanto antes, assim me mantenho ocupada. Não
quero ficar remoendo meus pensamentos. Tudo ainda é muito difícil.
— Nem consigo imaginar o quanto deve estar sendo difícil para
você, só posso desejar que tudo isso passe o mais rápido possível.
— Muito obrigada. Tenho certeza de que aqui de fato conseguirei
colocar uma pedra sobre essa situação.
Depois de tomar seu desjejum, Alice foi até a cafeteria onde
Dona Lourdes a estava esperando.
— Está animada para começar?
— Sim, espero poder corresponder às expectativas. Mais uma vez
quero agradecer pela oportunidade e confiança.
— Que isso minha filha, eu é que agradeço por você ter aceitado
trabalhar aqui comigo. Como te disse, o salário não é lá aquelas coisas, mas as
gorjetas são bem generosas.
— Para quem quer recomeçar a vida, é tudo o que preciso.
Dona Lourdes mostrou-lhe toda a rotina da cafeteria e apresentou
os demais funcionários que trabalhavam ali. Alice procurou prestar muita
atenção às orientações e anotou tudo o que julgou relevante. Nos primeiros
dias, até que pegasse o jeito, ficaria responsável por atender às mesas. Depois
passaria a atender ao balcão. Dona Lourdes sabia do grande potencial que Alice
tinha e almejava deixá-la como gerente do lugar, assim teria mais tempo para
cuidar do Resort porque seu marido sozinho não estava conseguindo dar conta.
Alice aprendia muito rápido. Uma semana depois já estava
operando o caixa. Dona Lourdes já podia ficar a maior parte do tempo no Resort
e deixar a cafeteria aos cuidados dela.
A clientela do café era constituída basicamente de turistas e
trabalhadores do comércio local. Já conhecia a maior parte desses
frequentadores e conseguia distinguir a preferência da maioria deles. Ela era
uma trabalhadora incansável, muito educada e prestativa. Ganhara peso e tinha
uma expressão mais alegre, mais bonita. Quando chegou à cidade estava muito
magra e trazia uma fisionomia um tanto triste. Apesar de sua beleza, aparentava
ter mais idade do que realmente tinha. No entanto, aquelas duas semanas trabalhando
ali fizeram-na remoçar e trouxeram de volta a sua beleza natural.
Dona Lourdes não cansava de elogiar a competência de Alice e sua
dedicação ao trabalho. Também eram muitos os elogios que recebia da clientela
pela atenção que dispensava aos frequentadores do lugar. Por conta disso, o
número de clientes quase que dobrou obrigado Dona Lourdes a contratar mais uma
pessoa para ajudar no atendimento. A beleza de Alice correu a cidade e os
solteirões de plantão afluíram para o lugar no intuito de, se possível, caírem
nas graças daquela linda mulher. Em contrapartida, tal beleza provocava ciúmes
nas esposas e namoradas que acompanhavam seus pares. Não que Alice desse algum
motivo para isso, pelo contrário, procurava manter-se alheia e evitava toda e
qualquer situação que pudesse provocar algum mal entendido.
Dona Lourdes se divertia com os olhares dos clientes seguindo
encantados aquela linda figura se movimentando no balcão. Estavam como que hipnotizados diante de beleza tão
exuberante. Era como uma flor que
desabrochou em todo o seu vigor. Parecia ser outra pessoa. Agora, sorria quando
conversava com os clientes. Muitas vezes, era pega cantarolando, nem chorava
mais quando lembrava da traição e do divórcio. Toda aquela lida diária lhe fez
muito bem.
Fazia três meses que Alice trabalhava ali, estava realmente
muito feliz. Fez muitas amizades. Conhecia muita gente e também era conhecida.
Entretanto, um certo dia mostrou-se desanimada.
Dona Lourdes preocupou-se e veio saber o motivo que a estava
perturbando. Tinha-a como uma filha e desejava que ela realmente fosse feliz.
— O que está te incomodando, minha querida?
— Ah, Dona Lourdes, recebi um e-mail informando-me que os papéis
do divórcio saíram. Teremos uma
audiência de conciliação daqui a duas
semanas. É apenas uma formalidade, mas eu realmente não queria ter que
encontrá-lo outra vez. Tenho medo de que se eu o vir toda a dor que senti volte
novamente.
— Realmente, creio que é uma situação muito complicada. Você
gostava bastante dele, não é?
— Foram quase dez anos de convivência. A senhora não faz ideia
da dor que eu senti quando o flagrei na cama com aquela mulher, justo na cama
de nossa casa. A senhora imagina como isso me feriu profundamente?
— Nem consigo imaginar.
— Só em saber que o verei daqui a alguns dias, isso já me deixa
nervosa. Não sei como vou reagir a isso.
— Quer que eu vá com você?
— Não será preciso. Minha colega, que também é advogada, vai me
acompanhar.
— Pense pelo lado bom, depois disso, você nunca mais terá de
vê-lo de novo.
— Assim eu espero.
Alice procurou não mais pensar sobre a audiência. Entregou-se
mais ainda ao trabalho a fim de não ficar revirando aquele assunto. Decidiu que
deixaria para se preocupar com aquilo na hora em que chegasse ao fórum. Os dias
passaram e ela não demonstrou mais estar preocupada com o reencontro, pelo
menos procurava não demonstrar às pessoas o que de fato sentia.
[1] Névoa fina e úmida que às vezes paira sobre as cidades
do litoral, flutuando ao longo da costa. Esse spray é formado por bilhões e
bilhões de gotículas de água do mar, que sobem ao ar toda vez que uma onda
arrebenta na praia.