II REALIDADE
No dia seguinte, William estava cuidando de umas papeladas que ficaram acumuladas desde a saída de sua assistente em seu escritório. Enquanto tiravauns documentos de sua pasta, viu a foto que recebera um tempo atrás. Pegou-a e ficou observando-a por um momento. Distraiu-se. Naquele instante o professor Cesar, colega de William, estava pas- sando pelo corredor em direção ao auditório da faculdade de Letras onde ocorreria uma reunião dali a pouco tempo.
Cesar foi o primeiro com quem William fez amizade quando veio trabalhar ali ainda como professor titular de Literatura Brasi- leira. Ele era um sujeito alto, cabelos lisos já grisalhos, sempre pre- sos por um coque no alto da cabeça ao estilo dos Samurais, barba por fazer e um certo ar de deslei o típico de alguém que não se importa com o que os outros pensam.
Ao passar em frente à sala de William e perceber que a porta estava aberta, resolveu dar um oi. Nesse momento, William estava segurando a foto reclinado na cadeira absorto em seus pensamentos olhando para um ponto qualquer no teto. Cesar chamou-o, nada.
Chamou-o pela segunda vez, nada. Então bateu na mesa com panca- das leves.
— Ei, acorda!
William assustou-se e dei ou cair a fotografia que estava segurando nas mãos. Cesar apanha-a e após e aminá-la por um breve momento, pergunta:
— Quem são esses?
— Meus amigos dos tempos de escola.
— Eu estava te chamando e você não respondia, daí bati na mesa. Desculpa se te assustei, disse isso entregando a fotografia a William.
— Sem problema, estava apenas relembrando…
— Relembrando? Relembrando de algo ou de alguém? Per- guntou Cesar fazendo certo ar de interesse.
— Dei a pra lá. São só lembranças passadas de um tempo que não voltará mais.
— Nossas, agora fiquei emocionado, Cesar disse sorrindo.
— O que o traz aqui a essa hora?
— Estou indo pra reunião no auditório, e aliás o senhor também deveria ir, esqueceu?
— Esqueci completamente. Ainda bem que você me lem- brou, senão eu estaria encrencado.
Willian pegou a fotografia e guardou-a em sua maleta saindo em seguida na companhia de Cesar. Pelo caminho, encontra- ram os professores Norberto e Marcel que também se dirigiam ao auditório.
Norberto era uma figura e cêntrica, todo metódico, gostava de andar rigorosamente alinhado, cores sempre combinando. Tinha estatura média, um pouco mais bai o que Willian, bom porte físico, pois sempre estava malhando, olhos pretos, nariz adunco, barba perfeitamente alinhada. Usava óculos. Um tipo clássico. Já Marcel era o oposto, deve ser por isso que se davam tão bem. Alto, sempre em traje esporte, cabelos até a altura dos ombros, rosto fino, olhos cas- tanhos, um ar de tranquilidade emanava dele. Alguns afirmavam que ele era parecido com John Lennon, o que o dei ava cheio de orgulho. Se bem que algumas vezes parecia mesmo, deve ser por causa dos óculos de mesmo estilo.
Pouco tempo depois, chegaram ao auditório. Um lugar igual a qualquer outro até no cheiro de carpete velho e mofado. Amplo. Caberia facilmente quatrocentas pessoas. O palco era rodeado por grossas cortinas que já estavam desbotadas pelo tempo, ou simples- mente poderia ser sujeira mesmo. Willian nunca vira, desde que co- meçou a trabalhar ali, as cortinas sendo retiradas para lavar. Geral- mente o auditório era usado para ensaios e apresentações. Quando a sala de reuniões estava ocupada, a reitoria costumava fazer ali as reuniões administrativas e pedagógicas, caso não houvesse ensaio ou apresentação. As cadeiras eram estofadas e dispostas em semi- círculo. O fundo do auditório era na parte mais alta, e na parte bai a ficava o palco. O sistema de som e a iluminação, no entanto, eram novíssimos.
Willian preferiu sentar-se ao fundo para evitar ser visto. Toda vez que o reitor o via em qualquer lugar, chamava-o e desem- balava a tecer comentários e reclamações. Dessa vez não, ficaria es- condido no fundo.
Enquanto pensava sobre isso, o reitor começou o seu cos- tumeiro discurso de abertura dos trabalhos, como gostava de dizer nas reuniões. Tinha uma voz um tanto rouca resultado dos longos anos maltratando-a em sala de aula sem se preocupar em cuidar dela. Era um homem lá pelos seus sessenta e tantos anos. Barba sem- pre bem aparada, cabelos brancos bem lisos em um corte estilo mi- litar, o que lhe dava um ar de seriedade. Estava sempre de terno e gostava de estar bem perfumado. Willian não se lembrava de alguma vez o ter visto em outro tipo de traje. Ele não gostava de William e não fazia questão de esconder. Para ele, William era muito certinho. Sempre dizia que não gostava de gente certinha demais.
— Obrigado pela presença de todos. Gostaria de informá- los que teremos um novo membro em nosso corpo docente este ano. Com a saída da professora assistente Vera, o departamento de Letras ficou desfalcado por um longo tempo. Mas, nesse ano, com o novo edital, foi possível contratarmos uma substituta. Por questões buro- cráticas ela só poderá iniciar semana que vem. Sendo assim, Willian como coordenador do curso deve ficar encarregado de situar a nossa nova colega de trabalho.
Não que essa fosse uma atribuição das funções que lhe competiam, mas o reitor sempre procurava ocasião para tornar o trabalho de William mais amargo. Isso desde a vez em que o con- frontou a respeito de uns equipamentos comprados por um preço e orbitante sem que a qualidade fosse compatível. Desde então, tor- nou-se alvo da inimizade do reitor. Buscava sempre uma oportuni- dade para o sabotar em algo ou tornar-lhe o trabalho mais difícil.
Irritado, Willian pensou: já tenho tanto o que fazer e o rei- tor me vem com mais essa, bancar o babá de professora novata, as- sim não dá. Nada o incomodava mais do que ter de fugir à sua rotina, e o reitor sabia disso muito bem. Quanto a isso, era tão metódico quanto Norberto. Sempre sentava no mesmo lugar na praça. Usava sempre as mesmas marcas de produtos, andava pela mesma calçada tanto para ir quanto para vir da faculdade. Chegava sempre pontu- almente, sempre no mesmo horário, almoçava estritamente e sem variação no mesmo restaurante e sentado no mesmo lugar. Caso seu lugar preferido estivesse ocupado, esperava pacientemente até que fosse desocupado. Por isso, essa ideia de quebrar sua rotina, não o agradava em nada. Essa metodicidade toda, adquiriu há alguns anos atrás.
Ao término da reunião, Willian foi um dos primeiros a se retirar. Estava contrariado, não queria conversar com ninguém. Também ainda havia muito o que fazer no escritório e aquela reu- nião, para ele, não serviu de nada, apenas aborreceu-o.
Antes de chegar em sua sala, decidiu tomar um café na lan- chonete da faculdade. Gostava do café de lá por ser coado. Às vezes enjoava do café da máquina que tinha em seu escritório. Enquanto estava sentado ali, Cesar apareceu para tomar um café também.
— Que reuniãozinha sem pé nem cabeça, não é? Cesar disse enquanto adoçava seu café.
— Não se cansam de nos fazer perder tempo, isso sim. Ao invés de gastarem energia com essas reuniões sem sentido, deve- riam planejar maneiras mais efetivas de resolver os problemas que temos, e não são poucos.
— Pois é. Estou com uma demanda faz um tempo e não a resolvem.
— O duro de tudo isso é que também tenho várias pendên- cias e também nada. Já solicitei aquela alteração no regimento que conversamos. Protocolei dois pedidos e nada.
— Bom é isso, tenho que ir. Entro em aula já, já.
— Também tenho que ir. Estou atolado de serviço.
Voltou ao escritório, fez várias ligações, atendeu professo- res, alunos, fez relatórios, trabalhou, trabalhou e trabalhou, no en- tanto, não conseguiu fazer a metade do que tinha de ser feito. Pre- cisava que a assistente fosse competente, se não, estaria em maus lençóis.
No dia seguinte, havia o dobro do trabalho e ainda por cima teria de dar aula a manhã toda. Para ele, essas aulas funcionavam como um bálsamo. Um momento em que se sentia plenamente rea- lizado. Aceitara a coordenação por acreditar que poderia fazer algo para mudar a qualidade do ensino. Isso foi possível, só que o reitor sempre se interpunha às suas ações e não permitia que ele fizesse mais. Isso o frustrava muito tornando sua vida mais desgostosa do que já era.
No fim da tarde, William estava na lanchonete comendo um lanche, pois novamente chegaria tarde em casa. Havia tanto a fazer que não teria tempo para ir ao seu restaurante preferido. Enquanto tomava seu suco predileto, Nora a professora de Retórica sentou-se ao seu lado.
— Pelo jeito tu trabalharás até tarde hoje novamente, estou certa?
— Pois é, enquanto a assistente não chegar vai ser assim. Não tenho tido tempo pra nada. Ando muito ocupado.
— Penso ser difícil mesmo. Creio que com a chegada da tua assistente, ficarás mais livre.
— Sem dúvida será de grande ajuda. Já está indo pra casa?
— Ministrarei ainda uma aula antes de ir embora.
— Quer tomar um café, comer alguma coisa?
— Apenas um café, por favor.
William solicitou ao atendente que fornecesse um café à se- nhora Nora, uma mulher de meia idade muito elegante, esbelta, ca- belos castanhos claros em um corte tipo Chanel. Nariz fino, sobran- celhas finas bem torneadas, costumeiramente trajando conjuntinho social de muito bom gosto, com uma echarpe de seda combinando com o vestuário. Era uma pessoa serena e bem tranquila, embora seus traços lhe conferissem certo ar de severidade. Andava sempre bem ereta. Tinha um porte nobre. Parecia ser alguém de posses.
Ela agradeceu pelo café e dirigiu-se à sala dos professores a fim de pegar seus materiais. Terminado seu lanche, ele retornou à labuta em seu escritório. Enquanto e aminava uns documentos que precisariam de sua assinatura, o professor Marcel bateu à porta da sala.
— Entra, Marcel, estava te esperando. Sente-se, por favor.
— Obrigado. Queria falar comigo?
— Sim, você sabe que estamos próximos ao dia da consciência negra, certo?
— Exato.
— Então, gostaria de pedir a sua ajuda para fazermos uma campanha contra o racismo. Temos tido alguns relatos de pessoas sofrendo preconceito nas dependências da faculdade. Por esse motivo, queria lançar um projeto que abordasse não só a questão do preconceito racial, mas que pudesse resgatar um pouco da cultura afro e sua relação com a construção do país. O que você acha?
— A ideia é muito boa. Realmente falta algo nesse sentido. Embora tenhamos a disciplina de Cultura Afro-brasileira, ela abrange apenas um módulo no primeiro semestre do curso de Letras. Algo mais efetivo precisava ser feito.
— Então vamos ficar assim, você monta um projeto com os alunos, agenda comigo e discutimos depois, pode ser?
— Fantástico. Obrigado.
— É inaceitável que uma universidade permita que esse tipo de coisa aconteça em suas dependências. Conto contigo.
— Pode deixar. Semana que vem eu já te envio a proposta de projeto, ok?
— Fico no aguardo, Obrigado.
Os casos de preconceito eram uma das demandas que William havia pontuado com a reitoria. Estava cansado de não receber uma resposta clara da parte deles para o problema. Decidiu fazer o que estava ao seu alcance. Não conseguiria abranger todas as faculdades, mas pelo menos na de Letras, isso seria combatido com in- formação e conhecimento.
Quando o reitor ficou sabendo do projeto, não gostou. Isso fez com que ele o chamasse em sua sala logo cedo no dia seguinte. William, já prevendo o que o esperava, foi preparado para rechaçar os argumentos do reitor.
— Bom dia senhor William, sente-se, por favor.
— Bom dia senhor reitor, obrigado.
— Por que o senhor resolveu fazer um projeto que é de competência da reitoria organizar? Nós já não tínhamos conversado sobre os casos de preconceito? As ações estão sendo feitas em todos os departamentos.
— Na verdade, o projeto está ligado ao dia da consciência negra. Além do mais, como é uma ação pedagógica, não há motivo para que a reitoria se preocupe com isso, já que há tantas outras de- mandas “mais importantes” que dar atenção. Essa ação está restrita à faculdade de Letras apenas. Agora, se o senhor quiser, poderá utilizá-lo nas demais faculdades.
— Nós já temos um projeto em implantação. Não será necessário nos servirmos do seu. Só lhe advirto de que esse seu projeto realmente fique restrito ao seu departamento, ok?
— Perfeitamente senhor reitor. apenas ao meu departamento.
William saiu da sala do reitor chateado. Tudo o que tentava fazer para resolver as coisas encontrava sempre uma barreira. Só que dessa vez não recuaria, seguiria com o projeto desse no que desse.
Enquanto voltava para a sua sala, encontrou no corredor o professor Norberto.
— Estava mesmo indo até a sua sala, William.
— Aconteceu alguma coisa?
— Pedi um material para as aulas de iniciação científica e até agora nada. E olha que já faz dois meses isso. Preciso urgente- mente.
— Já verificou no almo arifado?
— Sim, fui lá três vezes essa semana. As aulas começam na semana que vem e sem esse material vai atrasar tudo.
— Pode dei ar que eu vou dar um jeito, ok?
— Beleza, conto com você.
— Eu mando uma mensagem com uma resposta até amanhã.
William assim que chegou ao escritório pôs-se a tentar resolver o problema do material. Ligou para alguns departamentos, fornecedores, falou com um e com outro. Isso lhe consumiu umas duas horas, por fim, tudo resolvido. Mandou mensagem ao Norberto avisando-o de que o má imo que conseguira foi que entregassem o material dele na se ta-feira na parte da manhã. Era garantido. Norberto mandou uma mensagem de volta agradecendo o empenho. Mais uma demanda resolvida.
Naquele dia, chegou em seu apartamento mais tarde do que nos dias anteriores. A senhora Matilde tinha dei ado tudo organizado e um bilhete fixado na porta da geladeira, “não se esqueça de colocar o li o pra fora”, escreveu ela. Ela veio trabalhar no apartamento de William logo que ele se mudou. Faz quatro anos.
Era um apartamento pequeno. Já o alugara todo mobiliado. Nada lu uoso, no entanto, muito aconchegante graças às mãos femi- ninas de Dona Matilde que fizeram todos os arranjos necessários para dar um ar de leveza e alegria ao local. A grande vantagem de se morar lá era que ficava pró imo ao campus.
Para alguém sozinho, era até grande, pois ele passava a maior parte do seu tempo trabalhando em sua sala na faculdade. Praticamente apenas o usava como dormitório. Como já estava bem tarde, não teve ânimo para comer nada. Preparou um chá e sentou-se no sofá, que por sinal era muito confortável, embora destoasse um pouco dos demais móveis, um artigo um tanto mais luxuoso. Era de couro com ricos detalhes de madeira na frente de cada braço. Estava cansado, no entanto, sem sono.
Willian abriu sua pasta para retirar os documentos que ali estavam. Junto aos documentos estava a fotografia que ele guardara na pasta antes de ir à reunião. Examina-a mais uma vez e isso lhe traz novas recordações daqueles tempos idos.