quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Sofá

 

O sol despontava no horizonte. A névoa fria dissipara-se. Ermínia abriu os braços espreguiçando-se. Era hora de levantar. Tinha muitas coisas que fazer. Depois de arrumar a casa, teria de ir ao centro da cidade para comprar o seu tão sonhado sofá. 

Levantou-se preguiçosamente, foi ao banheiro, escovou os dentes, lavou o rosto. Tomaria banho depois. Preparou seu café. Estava gostando de morar sozinha. Casar, não queria. Primeiro era arranjar-se na vida. Ainda era cedo para pensar nisso. 

Tinha um ou outro pretendente, mas nada que de fato valesse a pena. Tinha sonhos ambiciosos. Queria ser alguém na vida, como seu pai sempre falava. — Filha, antes de qualquer coisa, seja alguém na vida.

Aquele sofá representava isso para ela. A ideia de que as coisas começavam a dar certo. Se tivesse um sofá, aquela sala deixaria de ser tão vazia. Poderia receber as pessoas. Chamaria sua mãe e seu pai para uma visita e oferecer-lhes-ia um café. Sentar-se-ia para assistir a um filme e até mesmo dar uma cochilada, por que, não? 

Trabalhara duro durante seis meses juntando dinheiro para comprar aquele tão desejado objeto.  Agora estava tão perto. Faltavam apenas algumas horas. Por isso estava ansiosa.

Terminou de limpar a casa às 12h. Tomou banho, arrumou-se. Comeria alguma coisa lá na cidade mesmo. Desceu a rua, pegou o ônibus. Não se aguentava de tanta euforia. Não via a hora.

Desceu no terminal de ônibus. Teria de caminhar uns dez minutos até chegar à loja. O coração estava acelerado, uma grande alegria tomou conta de seu ser. No dia anterior, enquanto ia para casa, passou em frente à loja e viu-o lá esperando-a e agora ele seria seu.

Entrou na loja e correu os olhos para vê-lo. Ei-lo ali no mesmo lugar. Ufa, não foi vendido ainda. Foi até onde ele estava. passou a não em um de seus braços. Sentou-se fazendo ar de satisfação. O vendedor veio atendê-la.

— Boa tarde. Posso ajudá-la?

— Eu quero levar este sofá.

— Perfeitamente, vamos ao atendimento, por favor.

Os trâmites foram feitos e ela comprou o tão sonhado sofá. Recebeu a promessa de que em três dias ele seria entregue. Voltou para casa realizada. Agora era apenas uma questão de tempo até que seu sofá chegasse. 

Os dias foram passando e a expectativa aumentando. Ela já não aguentava mais de tanta ansiedade. No dia e hora marcados, a campainha tocou. era o pessoal da entrega. 

Ela abriu a porta e dois homens, carregando o seu sofá, entraram. Eles desembalaram o produto e o colocaram no espaço que foi reservado para ele. Por estar feliz, agradeceu efusivamente aos trabalhadores a ponto de eles ficarem sem graça. 

Eles saíram e ela trancou a porta. Agora o momento era só seu. Veio andando devagar, passou a mão no tecido, puxou o ar com  força a fim de sentir o cheiro de coisa nova. Sentou-se e ficou alisando o estofamento. Agora sim. Era tudo o que queria.

Um mês depois, ela já não achava mais aquele sofá tudo aquilo. Era até meio pequeno. Devia ter comprado um maior. Pensava nisso enquanto estava no ônibus indo para casa. Olhou para a mesma loja e viu, no mesmo lugar, um outro sofá, maior, mais bonito, do jeitinho que ela queria. Desceu no primeiro ponto, voltou à loja. O mesmo vendedor veio atendê-la, já era sua cliente preferida.

Saiu da loja com o orçamento em mãos. Teria de apertar o cinto por uns oito meses. Esse era bem mais caro, mas maior e bem melhor.  Chegou em casa, abriu a porta e deparou-se com aquele sofá feio, pequeno e desconfortável enfeiando sua tão preciosa sala. 

Tirou o papel com o orçamento da bolsa. Pegou o celular e começou a olhar a foto que tinha tirado do sofá que vira na loja. Agora sim, poderia convidar as pessoas, chamaria seus pais, oferecer-lhes-ia um café, maratonaria uma série e quem sabe, poderia até cochilar no sofá. 


Apartamento

 


Vera abriu a janela do pequeno apartamento onde morava. Um desgosto tremendo subiu-lhe espinha acima. Lutara tanto para conseguir a sua tão sonhada casa com vistas para o centro e agora isso. Um novo prédio enfeiava a paisagem com suas colunas de tijolos nus e um barulho infernal com o vai e vem de trabalhadores e caminhões despejando materiais a todo momento. O desgosto era tamanho que mantinha todo o tempo a janela e as cortinas fechadas. 

Nem tinha mais vontade de convidar suas amigas para passarem uma tarde agradável em sua pequena varanda. A churrasqueira elétrica que a muito custo foi adquirida, estava cheia de pó e fuligem da obra. 

— Que inferno de vida! Se eu soubesse que seria assim não teria comprado essa droga de apartamento. Ela disse fechando a cortina e sentando-se no sofá.

— O que é isso querida, pense no lado bom. Em breve este lugar vai valorizar e conseguiremos pelo menos o dobro do valor que pagamos. 

— E você acha que eu vou ter paciência para esperar até que isso aconteça?

— O que acho é que não podemos tomar nenhuma decisão de cabeça quente. Marcos disse, sentando-se no sofá ao lado de sua esposa.

— E eu vou ficar vivendo nesse inferno até quando? Esse maldito prédio que estão construindo estragou toda a vista daqui de casa. 

— Mas, nós mal acabamos de pagar o apartamento e você já quer mudar?

— Claro! Tenho certeza que acharemos coisa melhor. 

— Não sei não. Vender um imóvel às pressas, nunca é um bom negócio. Acho mais sensato esperarmos um pouco até valorizar mais.

— Eu não passo nem mais um mês neste lugar, ouviu? Ou vendemos essa porcaria, ou eu volto para a casa de minha mãe.

Marcos sentiu crescer uma raiva dentro de si. Ela infernizara-o até que ele acabou cedendo e concordando em comprar esse apartamento. A princípio não queria, mas agora tomou gosto pelo lugar. Já estavam morando ali há uns três anos. Fez muitas amizades. Não seria tão fácil deixar tudo de lado.

Lembrou-se do esforço que fizera para levantar o dinheiro da entrada. Vendera o seu tão estimado carro, um Maverick com tudo original, peça de colecionador. Pegara empréstimo no banco, com o irmão e até apelou para a vó. Tudo isso para quê? Para no fim das contas dar nisso. Fervia de raiva.Mais de si mesmo por ser tão molenga do que por ela ser tão insistente.

— Não vou vender nada! Por fim ele disse levantando-se e fazendo menção de sair da sala

—Pois então, vou-me embora.

— Pois bem, se sair por essa porta, cuide em não se arrepender depois, porque eu não aceito mais.

Ele abriu a porta para sair de casa.

— Então vai ser assim? Vou-me embora. Ela disse já se levantando.

— Você vai insistir nisso? Então você que sabe. Ele saiu e foi para a pracinha do condomínio. 

Ficou lá um bom tempo até que a raiva passasse. Quando voltou, encontrou as portas do guarda-roupa abertas. Ele olhou ao redor e notou que as coisas dela não estavam mais ali. 

Um ano se passou. O prédio ficou pronto. Marcos vendeu o apartamento pelo triplo do valor. Comprou de volta seu Maverick. Mudou para uma casa mais espaçosa e com um belo quintal em um bairro bem arborizado.

Quando Vera ficou sabendo pelas vizinhas o que havia acontecido, depois de encontrá-las no centro da cidade, bateu-lhe um tremendo arrependimento. Para piorar, ainda era doida por ele.  Mas cadê a coragem para voltar atrás?

Depois que recebeu o dinheiro do apartamento e antes de recomprar seu carro de estimação, Marcos  repartiu o dinheiro em partes iguais e depositou a parte que cabia a Vera. Agora podia viver em paz, pensou.

Colocou o carrão na garagem, entrou em casa, abriu a geladeira, pegou uma lata de refrigerante, sentou-se na varanda, estirou os pés. 

— Ah! Como a vida é boa!


Hospital

      

          Orlando abriu os olhos. Não reconheceu onde estava. Sua cabeça parecia que ia explodir, Olhou para os lados, era um hospital? O que estava fazendo ali?


Momentos depois a enfermeira entrou.
— Que bom que você acordou.

— Afinal de contas, onde estou e por que estou aqui?

— Quantas perguntas, por enquanto, apenas descanse. Você precisa se recuperar primeiro.

— O que aconteceu comigo? Por que eu estou aqui? Não me lembro de nada.

— No momento certo o médico virá para falar com você.

Ele ficou ali tentando imaginar o que havia acontecido. Realmente não se lembrava de nada. Procurou puxar pela memória e reconstituir seus últimos passos.

— Eu lembro que estava em casa deitado no sofá. Recebi uma ligação. — De quem era? — Não sei. Não lembro.

O tempo foi passando e nada do médico aparecer. Por fim, ao fim do dia, um plantonista veio ver como ele estava.

— Muito bem, vejo que você já está acordado. Está sentindo alguma coisa? Dói em algum lugar?

— Não, não sinto nada. Apenas não me recordo de nada. O que aconteceu.

— Olha, como sou novo aqui, não sei lhe dizer. No entanto, o médico que está acompanhando o seu caso, deve vir amanhã para vê-lo.

Orlando achou tudo aquilo muito estranho. Não estava entendendo nada. Por fim resignou-se. — Amanhã quando o médico vier, falo com ele.

A noite se arrastou monótona. O cheiro de hospital deixava-o enjoado. Ainda estava ligado a um monte de aparelhos e faltava-lhe forças para fazer o menor movimento na cama.

No dia seguinte, o médico encarregado de seu caso veio finalmente vê-lo.

— Bom dia, meu caro. Que bom que você acordou. Como está se sentindo?

— Estou bem, mas por que todo mundo me pergunta isso?

— É óbvio.

— Óbvio? Para quem? Eu nem sei por que estou aqui!

— Então quer dizer que você não se lembra de nada?

— Nada. A última coisa de que me lembro foi que recebi um telefonema e mais nada. Aliás, eu estou me sentindo muito fraco. Não consigo nem segurar um copo.

— Isso é normal. Em breve e com algumas sessões de fisioterapia, você recuperará a força nos membros.

— Normal? Como assim normal?

— Sim, é normal quando se fica muito tempo em coma. Depois que acorda, leva ainda um tempo até que se restabeleça por completo.

— Coma? Que coma?

— Você ficou em coma por dez anos.

— O quê? Como assim?

— Você sofreu um acidente. Foi atropelado quando estava no ponto de ônibus e foi trazido para cá em estado crítico, quase morreu, mas graças a Deus conseguimos salvá-lo.

— E a minha família?

— No começo, sua esposa vinha todos os dias, mas depois de um tempo, ela não veio mais.

— Quero falar com ela.

— Lamento, mas não conseguimos mais entrar em contato com ela. O número que ela deixou, não atende mais.

Quase seis meses se passaram até que finalmente Orlando recebeu alta. Tudo o que queria era ir embora para casa. Os funcionários do hospital fizeram uma vaquinha e conseguiram algum dinheiro para que ele pudesse ir para casa.

Orlando saiu do hospital vestindo roupas que havia ganhado, pois as suas estragaram. em si não havia nada que fosse seu anão ser o próprio corpo. Sentia como se sua vida tivesse acabado. Tudo estava bem diferente. Já não reconhecia os lugares, as ruas, as casas, era como um estrangeiro em sua própria terra.

Desceu na rua principal. Teria que andar mais uns dez minutos até chegar em sua casa.

Estranhou a rua. Algumas coisas já não eram mais como antes. A padaria havia fechado, o bar deu lugar a uma loja de roupas. Até asfalto e guia agora tinha.

Chegou em frente à sua casa, respirou fundo. A fachada estava diferente. O velho portão de ferro deu lugar a um automático de alumínio, No lugar do antigo Fiat 147 agora estava um veículo cuja marca e modelo ele desconhecia completamente.

Tocou a campainha. Prendeu a respiração. Uma voz feminina pediu que esperasse um momento. Instantes depois o portão social é destrancado.

— Maria, sou eu! Ele diz com uma voz embargada.

— Você… acordou?

— Sim, estou bem agora. Nossa, você está mais bonita agora, o cabelo bem cuidado a casa está bem conservada. Nossa!

— Quem está aí, amor? Uma voz masculina perguntou de dentro da casa.

— Ah, é apenas um andarilho pedindo um pouco de comida.

Essas palavras fizeram o coração de Orlando tremer. Uma triste realidade veio-lhe à mente. Perdera tudo.

— Quem é que está aí? Ele por fim pergunto, mesmo suspeitando saber a resposta.

— Ah… é… é… que passou muito tempo… os médicos disseram que você talvez nunca mais acordasse. Eu precisava continuar a minha vida, entende. As dívidas estavam se acumulando e eu estava desesperada. Espero que você entenda.

Um gosto amargo subiu pela garganta de Orlando. Não sabia o que dizer, nem o que falar.

— É eu sei.

Dizendo isso, saiu dali cabisbaixo e triste. Andou até o ponto de ônibus. Sentou-se e ficou olhando para o nada. De repente, começou a cair uma garoa fina e enjoada. Um sentimento de saudade e melancolia tomaram conta dele. Colocou as mãos na cabeça e começou a chorar. Se era para viver esse pesadelo, era melhor não ter acordado.