REENCONTRO
Em um dia em que o movimento estava muito grande, por conta de um feriado prolongado, deu uma pane no sistema de gerenciamento do Resort. Esse sistema já estava um tanto ultrapassado e carecia de uma atualização. Dona Lourdes procurou o cartão de visitas da empresa que havia desenvolvido o sistema, mas não o encontrou. Ligou no número que aparecia na aba de suporte, mas também não conseguiu contato. O jeito foi procurar uma nova empresa que pudesse resolver o problema.
Fez alguns orçamentos, mas não gostou de nenhuma das opções ou por causa do preço, ou pelo produto oferecido não atender ao que ela precisava. Depois de várias ligações, encontrou uma empresa da qual gostou da proposta e do preço. Agendou uma visita com o especialista da empresa para que ele fizesse uma avaliação do seu sistema. A empresa escolhida não era tão grande, mas demonstrou ter exatamente aquilo que o Resort e a cafeteria precisavam.
No dia e horário marcados, lá estava o representante técnico da empresa de softwares para fazer o estudo das necessidades do cliente e adequar o seu sistema de gestão às suas características específicas.
— Boa tarde Dona Lourdes, Sr Lourenço, meu nome é Augusto e serei o responsável pela implantação do novo sistema de gerenciamento. A senhora disse que queria um sistema que fosse integrado também à cafeteria, certo?
— Exato! Eu queria algo que pudesse ficar centralizado em um único ponto, assim eu poderia gerenciar meus dois negócios de um mesmo lugar. Também seria muito importante que o sistema tivesse um controle de estoque personalizado.
O Sr Lourenço explicou toda a rotina do Resort a Augusto enquanto lhe mostrava os equipamentos em seu CPD. Augusto tinha lá pelos seus 36 anos, alto, bem apessoado, porte atlético, cabelos castanhos, olhos de mesma cor, sobrancelhas retas o que lhe dava um ar de bastante seriedade, barba bem aparada em máquina 1, natural e uniforme, nariz proporcional, lábios finos e uma covinha no queixo. Era sócio fundador da empresa de desenvolvimento de softwares com seu amigo de infância Marcos. Andava um tanto desanimado, pois os negócios não iam tão bem quanto esperava. Até tinha uma razoável cartela de clientes, mas certos problemas de gestão sempre os deixavam no vermelho. Por esse motivo, tiveram que reduzir custos e eles mesmos passaram a fazer os atendimentos.
No que diz respeito ao desenvolvimento de sistemas, Augusto era um gênio, poderia ter trabalhado em qualquer empresa do ramo que quisesse. Sempre tem recebido inúmeros convites para gerenciar alguma grande equipe de desenvolvedores, mas o sonho de ter seu próprio negócio o impede de aceitar trabalhar para outros como empregado.
Depois de conversar com o Sr Lourenço e a Dona Lourdes, traçou a topologia de rede do Resort. Fez várias anotações que lhe ajudariam a desenvolver um sistema totalmente personalizado, de quebra, ainda colocou o antigo sistema para funcionar até que o pudesse substituir completamente.
Pediu à Dona Lourdes para ver o sistema que era utilizado na cafeteria, pois assim teria uma ideia mais clara do que ela precisava. Foi conduzido por ela até o local. Augusto achou o lugar muito bonito. Quando viu Alice no caixa, ficou olhando-a por alguns instantes, sentiu alguém bater-lhe no ombro, quando se virou era um senhor já de idade.
— É, meu jovem, eu te entendo. Alice tem o poder de hipnotizar a todos que a veem. Só não pode deixar isso muito na cara, e deu uma risada, saindo em seguida.
Augusto ficou sem entender o que ele quis dizer com aquilo, pois pensava em outra coisa. Dona Lourdes chamou Alice e apresentou-a ao rapaz que estava ali para verificar o sistema.
— Alice, este é o Augusto. Ele é o responsável por substituir o sistema de gestão tanto do Resort quanto da cafeteria. Ele ficará um pouco aqui para ver como é a rotina de atendimento e assim poderá ter uma ideia melhor sobre como personalizá-lo.
— Prazer em conhecê-lo.
— O prazer é todo meu.
— Bem vou deixá-lo aos seus cuidados, pois tenho que atender uns fornecedores. Quando terminar, Augusto, peça que Alice me chame, ok?
— Pode deixar, ele disse apertando a mão de Dona Lourdes.
Enquanto Augusto falava com Dona Lourdes, Alice teve de atender ao caixa. Depois que Dona Lourdes saiu, ele pôde prestar um pouco mais de atenção nela, mas dessa vez tomando cuidado para não ser pego no flagra por alguém. Como era de tarde, o movimento na cafeteria estava mais tranquilo, sendo assim, teve tempo para verificar o sistema de gestão que estavam usando ali. Conversou com Alice sobre as necessidades que eles tinham e o que gostariam que o sistema tivesse, anotou as informações e fez a topologia de rede do local.
Enquanto conversavam, algo nela chamava sua atenção. Parecia que a conhecia de algum lugar, mas receava perguntar e ser mal interpretado. No entanto, não ficaria sossegado até que aquela dúvida fosse sanada.
— Posso te fazer uma pergunta pessoal? Augusto disse. Sei que você deve ouvir isso o tempo todo, mas tenho a impressão de já a ter conhecido de algum lugar. Claro, se não quiser responder, sinta-se à vontade.
— Tudo bem, pode perguntar, ela disse com uma expressão séria por suspeitar que viria uma cantada. Era sempre assim, toda vez que um homem travava conversa com ela, acabava cantando-a no final.
— Por um acaso, você já morou em Aishe e já frequentou a comunidade de jovens de lá?
— Sim, já morei em Aishe, sim. E quando eu era adolescente eu frequentava um grupo de jovens que tinha lá. Por quê?
— Porque é de lá que eu acho que te conheço. Desde a primeira vez que te vi, achei que te conhecia e agora acabo de confirmar isso.
— Eu não me lembro de você. Você também frequentou o grupo de jovens?
— Sim.
Nesse momento uns clientes chegaram e eles tiveram que interromper a conversa. Augusto ficou observando a dinâmica de funcionamento do estabelecimento e fazendo anotações em seu tablet. De posse das informações que precisava, avisou a Alice que seu trabalho naquele momento estava concluído e solicitou que ela avisasse Dona Lourdes. Enquanto a aguardava para conversarem sobre o projeto do novo sistema de gestão, Augusto voltou a tocar no assunto de que estava falando anteriormente com Alice, mas mais clientes chegaram e nem puderam recomeçar a conversa. Por fim, Dona Lourdes chegou e foram se sentar à uma mesa para discutirem o passo a passo da implementação do novo sistema.
— Alice, por favor, pode nos trazer duas xícaras de café?
— É pra já!
— Então ficamos assim, Dona Lourdes, na semana que vem eu retornarei para começar a implantação e a migração dos dados do sistema. É o tempo que eu preciso para personalizar o nosso sistema de gestão para que ele atenda às demandas de sua empresa.
— Tá ótimo, aguardarei sua ligação.
Augusto despediu-se e saiu pensando que se aquela Alice fosse quem ele pensava ser, realmente o mundo era muito pequeno. Por contrapartida, Alice ficou pensando de onde possivelmente havia conhecido aquele rapaz. Seria de Aishe mesmo? Não se recordava bem. Deixou de pensar nisso, pois mais clientes chegaram e ela precisou atendê-los.
— Por favor, embrulhe três salgados desse aqui para viagem e também quero dois cafés puros, também para viagem.
— Açúcar ou adoçante?
— Adoçante.
— Aqui está o seu troco, tenha uma boa tarde.
— O que vai querer hoje, Dona Margarida?
— O de sempre.
— Um momento, por favor.
— Aqui está o seu comprovante. Tenha uma boa tarde.
Uma semana depois, Augusto começou a migração do sistema. Como o serviço demoraria uns três dias, resolveu ficar hospedado no próprio Resort. No primeiro dia, ele fez “backup” dos dois bancos de dados, tanto do Resort quanto da cafeteria. No dia seguinte começaria a instalação do novo sistema.
Terminou o serviço previsto para o dia às 20h, estava faminto e foi até o buffet para jantar. Enquanto pegava sua comida, encontrou-se com Alice que também viera jantar. Surgia aí a chance de poder falar-lhe sem interrupções. No entanto, não quis forçar a barra, apenas cumprimentou-a e foi sentar-se à beira da piscina, pois estava uma noite muito agradável. Alice quando o viu, lembrou-se da conversa que tiveram, retribuiu o cumprimento, pegou seu prato e ia sentar-se ao lado de Dona Lourdes que já estava jantando, mas como estava curiosa para saber mais detalhes sobre como eles haviam se conhecido, resolveu sentar-se à mesma mesa que ele.
— Boa noite, importa-se se eu me sentar aqui.
— De forma alguma, fique à vontade.
— Depois daquele dia que conversamos, fiquei realmente intrigada. De onde nós nos conhecemos? Por acaso você também morou em Aishe?
— Vejo que você não se lembra de mim mesmo, disse isso com um certo ar de tristeza.
— Fiquei pensando nisso, mas realmente não consigo lembrar, ela disse colocando a mão no queixo.
— Então, você realmente morou em Aishe e frequentou o grupo de jovens da comunidade? Ele por fim perguntou.
— Quando eu era adolescente, fiz parte de um grupo de jovens em Aishe.
— Talvez você não se lembre do meu nome, mas certamente se lembrará do meu apelido daquela época.
— Qual era o seu apelido?
— Guga. Nós até dançamos quadrilha juntos, lembra?
— Guga… Guga… dançou quadrilha comigo?
— Esse mesmo e graças a um rapaz que queria trocar de parceira, lembra? Ele estava interessado em uma outra garota, mas tirou você como par…
— Dessa parte eu lembro. Ele falou que o garoto que eu estava interessada queria dançar comigo, mas eu não me lembro da dança e nem do rosto do garoto. Sei que dancei, mas não me lembro de mais nada.
— É mesmo uma pena que você não se lembre. Depois de tanto tempo nos reencontramos e você não se lembra de mim. Pelo menos, estou feliz em saber que você é aquela Alice que dançou comigo aquela quadrilha. Lembro disso até hoje.
— Sempre lembro daquela época, mas não de todos os detalhes. Tenho a impressão de que foi uma época muito boa mesmo.
— Quem sabe mais tarde você se lembra. Tenho até umas fotos que tiramos juntos, quando vier aqui novamente eu te mostro. De qualquer maneira, foi bom ter te reencontrado, mas agora tenho que voltar ao CPD para verificar como está a compilação do programa, pois amanhã terei que começar a segunda parte da migração do sistema. Realmente foi muito bom revê-la. Nos falamos depois, está bem?
— Lamento mesmo por não conseguir me lembrar.
— Sem problema! Tenha uma boa noite.
— Você também!
Quando Augusto saiu, Dona Lourdes veio sentar-se junto a ela.
— Alice querida, vi que você estava toda empolgada conversando com o rapaz do sistema, vocês já se conheciam?
— A senhora acredita que ele disse que me conhecia desde a adolescência?
— Como assim? Que mundo pequeno esse, não é?
— Nem eu acreditei. Quando ele veio falar comigo, me perguntou se eu era de Aishe e se tinha participado de um grupo de jovens que tinha lá. Eu não me recordava de ter conhecido alguém com aquele nome, sinceramente até agora estou tentando me lembrar, mas não consigo.
— Ele deve ter ficado triste quando você disse que não se lembrava. E não se lembra de nada mesmo?
— É que aconteceram umas coisas e eu perdi parte da minha memória daquele tempo. Por isso não conseguia me lembrar dele.
— Realmente, às vezes a vida prega cada peça na gente, que coisa. Quem diria que você encontraria uma pessoa que te conhece desde os tempos da adolescência e ainda em uma cidade pequena como essa depois de tanto tempo?
— Nem nos meus sonhos mais loucos eu havia imaginado que algo assim poderia acontecer.
Conversaram por mais algum tempo até que decidiram se recolher. Afinal de contas, o dia começaria cedo para elas.
No dia seguinte, Augusto começou a migrar os dados do antigo sistema para o novo. Por causa disso, a cafeteria teria que fechar mais cedo para que o sistema pudesse ser instalado. Depois de tudo instalado, haveria mais um período de adequação, onde aqueles que usavam diretamente o sistema, seriam treinados. Agora todo o controle de comandas seria eletrônico e todos os produtos teriam código de barras. Isso agilizaria os pedidos e o pagamento, pois bastava o cliente entregar o cartão de comanda ao caixa que o valor já estaria disponível em instantes sem a necessidade de ficar somando. Assim, aboliriam o uso das comandas de papel.
Quando estava tudo pronto e testado, Augusto foi despedir-se de Alice, pois intencionava voltar para a capital ainda naquela noite. Alice, porém pediu que ele ficasse, pois gostaria de conversar com ele. Augusto estranhou à princípio, mas acabou cedendo.
Depois do jantar, eles foram dar uma volta na orla, assim poderiam conversar tranquilamente e longe de olhos e ouvidos curiosos. Sentaram-se em um banco que ficava de frente ao mar. A noite estava muito agradável e uma brisa bem suave soprava naquele instante agitando os cabelos de Alice.
— Sinto que estou em dívida com você, ela disse tristemente.
— Não é para tanto. Acho que faz muito tempo e por isso é natural as pessoas não se recordarem, no entanto, devo confessar que fiquei um tanto decepcionado, principalmente pela nossa história.
— Realmente eu não me lembro de algumas coisas que aconteceram comigo naquela época. Eu sofri um acidente e perdi parte da minha memória.
— Acidente? Que acidente? Eu não fiquei sabendo de nada.
— Eu estava descendo a escada de casa quando meu salto quebrou, perdi o equilíbrio e rolei escada abaixo. Fiquei internada por meses inconsciente. Quando recobrei a consciência, já não me lembrava mais do que havia acontecido recentemente. Só muito lentamente que a minha memória foi voltando, mas de forma muito fragmentada e mesmo assim, não consegui lembrar de tudo.
— Eu não fiquei sabendo de nada disso. Quando fui à sua casa não encontrei ninguém, estava fechada. Um tempo depois fiquei sabendo que se mudaram para a capital.
— Minha casa? Você sabia onde eu morava?
— Sim, eu sabia exatamente onde você morava.
— Sinto muito, mais uma vez. Eu realmente não me recordo de nada. Por causa do tratamento, fui mandada para a capital. Meus pais tiveram que vender a casa para poderem arcar com as despesas médicas. Por isso, passamos a morar na capital. Meu pai e minha mãe tiveram que arrumar emprego lá para poderem ficar perto de mim. Eu realmente não me lembrava de nada que tinha acontecido antes, nem me lembrava que eu tinha caído da escada.
— Agora as coisas começaram a ficar mais claras. Você deve ter sofrido muito nesse tempo, não é?
— Embora eu tenha me acostumado, há como se fosse uma sombra pairando sobre a minha mente que me impede de lembrar. Isso me deixa muito frustrada. Eu gostaria de me lembrar, mas não posso. Sinto como se algo importante estivesse faltando, só que não sei o que é.
Durante a volta para o Resort, continuaram conversando e relembrando daquela época. Algumas coisas, ela não se recordava, de outras, confundia-se com os fatos. Quando chegaram, eram esperados por Dona Lourdes e Sr Lourenço que vieram para despedir-se e agradecer pelo excelente trabalho.
Augusto pegou suas coisas e colocou-as no porta malas. Despediu-se deles prometendo voltar na semana seguinte para ver como estava o sistema. Partiu deixando uma parte de si ali.
Enquanto seguia de volta à capital, ia pensando em tudo o que ouviu. Aquele amor por tanto tempo adormecido, que tinha sido o responsável por ele até ali não ter conseguido entregar-se de todo o coração às suas relações, voltou com força como se ainda estivesse vivendo naquele tempo. Teve certeza de que nunca a odiara de fato, mas amara-a profundamente e por todo esse tempo. Vê-la novamente só o fez ter certeza disso. Mesmo tendo passado tanto tempo, teria o direito de continuar amando-a? Ela já deve ter até se casado e quem sabe até tinha filhos. Se fosse isso, o que faria com todo esse amor que sentia? Pensar nisso o deixou amargurado.
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