quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Ponte entre rios capítulo V

 EQUIPE





A equipe cresceu. Agora contava com uma engenheira hidráulica, um engenheiro mecânico, uma engenheira civil, um engenheiro eletrônico, vinte eletricistas, cinco encanadores, três pedreiros, oito serventes e quatro encarregados. Na nova sala de Bernardo, ficavam os engenheiros e a secretária. Os demais trabalhadores da equipe ficavam em um galpão construído para acomodar ferramentas, equipamentos e materiais necessários à execução do projeto elétrico. Nesse galpão, havia três grandes bancadas onde eram montados os painéis de comando, luminárias, executados testes e reparos. 

Às oito e meia, Eloá entrou na sala onde passaria a trabalhar durante a execução do projeto sob a coordenação de Bernardo. Os containers em número de quatro quase formavam um quadrado garantindo assim um espaço grande onde acomodaram as mesas e até foi possível improvisar uma sala de reuniões. As orientações aos encarregados seriam dadas ali e eles transmitiriam as informações aos demais membros da equipe no galpão.  

Bernardo levantou bem cedo, estava eufórico. Queria ver a cara de Eloá assim que ela chegasse para assumir seu novo posto. Para Eloá, aquela noite foi a mais terrível que teve em muito tempo. Dormiu muito pouco, sentia-se humilhada. Várias vezes pensou estar sonhando e que aquele pesadelo logo acabaria. Quando entrou na sala e viu Bernardo em pé olhando-a fixamente, teve certeza de que aquela, a partir de agora, seria sua realidade.

— Bom dia! Bernardo cumprimentou-a de forma afetada.

— Bom dia, só se for para você, foi a resposta.

— Realmente, para mim é um dia especial, disse abrindo um sorriso que a fez odiá-lo mais ainda.  

— Que bom pra você, ela disse apertando os dentes e segurando-se para não o xingar.

A mesa de Eloá ficava à frente da sala onde Bernardo trabalharia. Considerou isso como uma afronta. Nunca havia passado por tamanha humilhação. Durante toda aquela manhã, não olhou na cara dele. Sentia-se sufocada, só pensava em sair dali. Ele estava desconfortável. Ao pensar nessa estratégia para humilhá-la e vingar-se, acabou por não perceber que estava sendo atingido pelo seu próprio plano. Sentia-se sufocado e isso estava tornando o seu dia intolerável.

Apesar de tudo, a competência e habilidade que Eloá demonstrava eram singulares. Era rápida, compenetrada, organizada, discreta e mostrava ter grande conhecimento da rotina da engenharia. Não havia meios de Bernardo a criticar em nada do que fazia. Tudo era feito com muito zelo e capricho.  Depois de conformar-se com sua sorte, Eloá convencera-se de que haveria uma oportunidade aí de pegar alguma falha de Bernardo. No entanto, ele trabalhava incansavelmente, era muito dedicado e tinha um conhecimento que a deixou de certo modo espantada. Nunca havia trabalhado com um engenheiro que dominasse tão bem a engenharia em todos os seus aspectos técnicos. Era habilidoso, prestativo e extremamente competente.

Na terça-feira de manhã, houve uma reunião de planejamento para discutirem a segunda etapa do projeto elétrico. Todos estavam reunidos na sala destinada a esse fim. Meio a contragosto, Eloá também estava, pois ficou acordado que ela participaria de todas as reuniões. É fato que Bernardo não foi o idealizador dessas propostas, foi uma solicitação feita pelos demais participantes. Sempre que os dois se olhavam, sentiam um certo desconforto, mas já não como antes.

— Precisamos verificar as etapas que seguiremos a partir de agora para o início da segunda fase. Podemos começar contigo, Paula?

— Bem, os dutos estão prontos e já poderemos lançar os cabos. Todo o sistema de drenagem também está pronto.

— Ainda falta apenas instalar o circuito de comando, pois as bombas já estão no lugar, Moacir afirmou consultando seu celular.

— Muito bem, e como estamos com a instalação do sistema de arrefecimento para o transformador de alta tensão, Bruno?

— Já completamos toda a soldagem dos encanamentos junto com a equipe da Paula e acredito que mais dois dias a equipe do Moacir vai poder instalar os circuitos eletrônicos de controle.

— Maravilha! Algum contratempo, Lara?

— Até aqui não, tudo está correndo de acordo com nosso cronograma. Estamos finalizando as tubulações para a fibra óptica e já fizemos aquelas caixas de inspeção que você havia solicitado.

— Eloá, como está a nossa agenda para essa semana? Bernardo perguntou.

— Não houve necessidade de nenhuma alteração e se continuar assim, será possível iniciar a terceira fase com duas semanas de antecedência.

— Que notícia boa, Bruno disse esfregando as mãos.

— Isso quer dizer que teremos mais um dia de folga, certo? Moacir perguntou.

— Exatamente isso. Vai ser bom depois de todo esse trabalho que a equipe tire um tempo de descanso. Eloá confirmou.

— Por favor Eloá, comunique aos encarregados que se continuarmos sem imprevistos, daqui duas semanas, toda a equipe terá três dias de folga. Bernardo disse olhando o calendário no celular. 

— Anotado!

A convivência entre os membros da equipe fez com que um pouco do rancor que existia entre Bernardo e Eloá fosse atenuado. Embora ainda não gostassem um do outro, já toleravam-se e eram capazes de conversar normalmente sobre questões de trabalho. Mesmo porque, de certo modo, um acabou ganhando o respeito do outro por causa do profissionalismo e seriedade com os quais estavam  tratando o projeto.

— O que você pensa em fazer na sua folga? Paula perguntou a Eloá.

— Não sei ainda. Nem tive tempo para pensar sobre.

— Eu quero ir ver minha família. Desde que chegamos, não pude ir nem uma vez, Lara disse num tom de lamento.

— Eu também estou pensando em visitar meus avós. Eles moram em uma cidade próxima. Como faz tempo que eu não os vejo, quero ir lá. Paula disse com um certo tom de dúvida.

— Eu acho que vou ficar por aqui mesmo. Como eu moro na capital, fica longe para ir e voltar em tão pouco tempo, vou acabar ficando mais cansada do que se não tivesse folga. Eloá afirmou.

Em um outro ponto da obra, Bernardo estava inspecionando o andamento da instalação de uma base para fixar o transformador.

— Não vejo a hora de chegar logo a nossa folga. Bruno disse.

— Vá com calma que tudo depende do cronograma. Bernardo afirmou enquanto se abaixava para conferir os parafusos que foram chumbados ao chão.

— Eu estou pensando em ir para casa ver minha família. Estou com saudade. Moacir confessou.

— E você Bernardo, o que está pensando em fazer? Bruno perguntou.

— Não sei ainda, mas como eu moro na capital, seria muito cansativo. Estou pensando em ficar por aqui mesmo. 

As duas semanas se passaram rapidamente. Nenhum imprevisto aconteceu e finalmente todos teriam a tão desejada folga estendida. O canteiro de obras ficou vazio. Apenas os seguranças, além de Eloá e Bernardo, ficaram no local. 

Bernardo estava deitado em seu alojamento refletindo sobre sua vida quando decidiu ir até a cidade. Aproveitaria aquele momento para passear por ali e almoçar. Levantou-se, arrumou-se e saiu.

Eloá estava em seu dormitório, Lá fora o tempo quente fazia com que ela se sentisse preguiçosa para sair. Não tinha ânimo para nada que dissesse respeito a sair de seu quarto. Intencionava ficar ali mesmo curtindo seu ar condicionado e maratonando alguma série. Esses eram seus planos.

Bernardo arrependeu-se de ter saído, o calor estava bem forte e já começava a sentir o suor escorrer pela face. A cena era bem diferente da última vez que estivera ali. agora não havia mais barracas e o lugar voltou à rotina de cidade pacata do interior. 

Como estava com muito calor, decidiu entrar em um bar-restaurante para tomar alguma coisa. Ainda tinha pesadelos com a batida de milho que tomara durante a festa e só de lembrar sentia seu estômago embrulhar, por isso, jurara nunca mais beber. Não suportaria dar outro vexame. 

Eloá estava entediada, já havia rolado de um lado para o outro na cama, assistido a quase três episódios de sua série favorita, mas naquele momento, nada a agradava. Decidiu-se. Banhou-se, arrumou-se, pegou seu leque, colocou seu chapéu de sol e saiu. Mesmo com aquele calor todo, seria bom caminhar um pouco, espairecer, ver pessoas, andar na cidade, talvez comprar algo.

Assim que se sentou, a moça que estava no balcão veio atendê-lo. Era uma jovem já pelos seus vinte anos de idade. Alta, morena cor de jambo, cabelos pretos cacheados, nariz largo, olhos pretos bem brilhantes, lábios carnudos, sobrancelhas grossas, um corpo de violão, tudo nela transpirava uma certa sensualidade. Estava usando vestido de chita floral sem manga e laço na cabeça.

Quando Bernardo viu aquela morena linda vindo atendê-lo, ficou todo animado. Interessou-se por ela na hora.

— Olá, você não é daqui, né? Ela perguntou.

— Não. Estou trabalhando na construção da ponte.

— Ah! E essa construção vai demorar para terminar?

— Bem, se tudo der certo, vamos levar mais um ano e meio.

— E o que gostaria de beber?

— Vou querer um suco de abacaxi com hortelã bem gelado. 

— Um momento que eu já trago.

Enquanto a morena preparava o suco, Bernardo não conseguia tirar os olhos dela. Realmente ficou encantado. 

Alguns minutos depois, ela lhe trouxe uma jarra de suco.

— Aqui está! Espero que goste.

— Com certeza já gostei.

— Como?

— Eu disse que como é de abacaxi, eu já gostei. Adoro suco de abacaxi com hortelã.

— Entendi.

— Faz tempo que você trabalha aqui?

— Sim, desde os meus quinze anos, é negócio de família e eu ajudo o meu pai. 

— Aqui vocês também servem almoço?

— Sim! E também servimos janta, inclusive aos fins de semana. A comida é típica da região. Experimente um dia, sei que vai gostar.

— É bom saber, às vezes enjoo de comer no refeitório da obra e quero comer algo diferente. 

— Os pratos servidos aqui são bem variados. Tenho certeza que você não vai enjoar! Disse isso abrindo um sorriso.

— Estou pensando em almoçar aqui mais tarde. Já que vocês oferecem almoço e janta também aos fins de semana, vou começar experimentando hoje.

— Ah! E hoje, teremos galinhada. É um dos melhores pratos servidos aqui. 

— Então, voltarei mais tarde.

Bernardo pagou sua conta e saiu pensando na impressão que aquela moça lhe causou. Quem sabe conseguiria conquistá-la. Durante o tempo em que estava na faculdade e até algum tempo atrás, não havia espaço para pensar em namoro. Mas agora que as coisas começaram a dar certo, pensava que já era hora de começar um relacionamento. Estava cansado de ficar sozinho.

Eloá, começou a arrepender-se de ter saído naquele calorão, principalmente por causa do ar abafado e sem brisa. Entrou em um bar-restaurante para fugir do calor e tomar algo que fosse refrescante.

— Olá, você não é daqui, né? Ela perguntou.

— Não, estou trabalhando na construção da ponte.

— Ah, que coincidência.

—  Coincidência?

— Agora  a pouco passou por aqui um rapaz que também trabalha na construção da ponte.

— Nossa! Coincidência mesmo.

— O que vai querer beber?

— Eu quero um suco de abacaxi com hortelã.

— Outra coincidência, ela disse dando risada. 

— Outra?

— O rapaz também tomou suco de abacaxi com hortelã.

— Hoje é o dia das coincidências, talvez?!

— Um momento que eu já trago o seu pedido.

— Ok!

— Aqui está! Nós também servimos almoço e jantar aqui. Comida típica da região, inclusive abrimos aos fins de semana. Venha provar um dia!

— Pois é, talvez eu passe por aqui mais tarde então!

— Será muito bem vinda!

Eloá pagou sua conta, despediu-se da atendente e saiu. Agora sentia-se um pouco mais refrescada. Uma brisa amena começou a soprar agitando-lhe os cabelos. Decidiu andar pelo pequeno centro comercial que ficava na rua principal. Da outra vez que estivera na cidade, por causa da festividade, não teve tempo de ver as lojas.

Entrou em uma loja de variedades e até comprou alguns acessórios de que gostou. Passou na loja de roupas, comprou duas camisetas, pois como ali fazia muito calor, seria bom poder usar roupas mais frescas. Praticamente entrou em todas as lojas.

Depois que saiu do bar-restaurante, Bernardo caminhou pela rua até chegar ao pequeno centro comercial. Viu uma loja que vendia livros usados e resolveu dar uma olhada. Fazia tempo que queria comprar alguns livros para entreter-se na leitura durante à noite. Ficou tanto tempo lá que já dava uma da tarde quando saiu. Estava com fome, lembrou-se da morena do bar-restaurante e resolveu dar uma passadinha por lá e almoçar. Uniria o útil ao agradável.

Depois de ter andado por todas as lojas, sentiu fome. Lembrou-se do bar-restaurante e do cheiro bom de comida. Ela resolveu almoçar lá. Quando chegou, apenas uma mesa estava vaga. 

O lugar estava cheio de gente. Isso reforçou o que a moça havia dito sobre a comida fazendo com que ele desejasse mais ainda prová-la. 

— Olá,seja bem vindo novamente!

— Resolvi seguir o seu conselho e vim experimentar a comida daqui.

— Aqui está o cardápio.

Alguns instantes depois, Bernardo fez seu pedido e também pediu mais um suco de abacaxi com hortelã. Enquanto aguardava, pegou um dos livros que havia comprado e se entreteve na leitura.

Eloá chegou ao bar-restaurante e percebeu que estava muito cheio. Quase ia desistindo quando a moça a reconheceu.

— Olá, moça da coincidência, bem vinda novamente. O prato de hoje está divino! Galinhada, já provou alguma vez?

— Não, mas pelo cheiro deve ser muito bom. Eu até gostaria de almoçar aqui, mas é que tá muito lotado.

— Verdade, geralmente essa hora fica muito cheio mesmo. Se você não se importar em sentar-se junto a outra pessoa, eu providencio um lugar para você. 

— Como estou morrendo de fome e esse cheiro está me matando, vou aceitar.

Eloá foi conduzida pela atendente até a mesa onde Bernardo estava. Como ele estava com a  cara enfiada no livro, nem percebeu que ela havia se sentado de frente para ele. Ela por sua vez também não notou por estar distraída olhando para uma reportagem que chamou sua atenção em uma TV que estava em um suporte na parede.

Bernardo guardou o livro na sacola e somente aí prestou atenção em quem havia sentado à sua frente. Alguns instantes depois de ver a reportagem, Eloá baixou os olhos e percebeu que a pessoa que estava à sua frente lendo o livro era Bernardo. 

— De novo! Os dois disseram ao mesmo tempo. 

— O meu dia estava maravilhoso até agora.

— É você quem tem o dom de estragar o dia dos outros. 

— Já não basta ter que ficar olhando para a sua cara depois da trairagem que você fez comigo para me humilhar?

— Se tem uma coisa da qual me arrependo foi ter sugerido ao seu pai que colocasse você para trabalhar comigo. Me dá um tremendo desgosto ter que ficar me encontrando com você todo dia.

— Não é maior do que o meu.

A discussão foi interrompida quando a atendente veio trazer os pedidos. Novamente por uma coincidência ou não pediram o mesmo prato.

— Ah, uma nova coincidência, a atendente disse, sorrindo. E virando-se para Eloá continuou — É ele que te falei que trabalhava na obra da ponte.

— Como assim? Você já a conhecia? Bernardo perguntou surpreso à atendente.

— É que ela também veio aqui mais cedo para tomar um suco e pediu o mesmo que você, trabalham na mesma empresa, não combinaram de se encontrar, mas se encontraram e ainda por cima, pedem a mesma comida; é muita coincidência dois amigos com as mesmas preferências acabarem se encontrando assim, não é?

— Não acho não! Eloá disse um tanto emburrada.

— Acho que a senhorita está enganada, nós não somos amigos.

— Não somos mesmo!

Como não havia outra mesa disponível, tiveram que ignorar-se até que terminassem de comer. Bernardo, esquecendo a promessa que fez a si mesmo, pediu uma dose de Whisky, encarou Eloá, virou de uma vez só e bateu o copo na mesa de maneira desafiadora. Pronto foi o suficiente.

Eloá pediu uma dose de Whisky, encarou Bernardo, virou de uma vez só e bateu o copo na mesa de maneira também desafiadora. 

— Por favor, moça, traga a garrafa.

Alguns instantes depois, uma garrafa de Whisky foi colocada diante dos dois.

— Vamos ver se você aguenta beber de verdade! Se quiser recusar, fique a vontade que eu peço um suco para você. A patricinha não deve estar acostumada com bebidas de verdade. Então não se esforce, ok?

— Você acha que eu vou perder para um tipo fracote para bebidas como você? Se quiser, pode desistir que vai ser bem a sua cara! Mas, se quiser continuar, não vai ficar chorando depois, viu?

E começou a disputa. Uma virada depois da outra. Quando a garrafa estava pela metade, já não falavam mais coisa com coisa. Ficaram lá tanto tempo que já era quase hora de fechar e nenhum dos dois queria arredar pé até que um deles admitisse a derrota. O dono do estabelecimento foi obrigado a chamar um táxi que os levou até o canteiro de obras. O resultado disso foi que no dia seguinte, os dois estavam de ressaca, a ponto de até uma gota de água caindo na pia fazê-los estremecer como se um sino estivesse badalando dentro da cabeça.

  


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